segunda-feira, 7 de julho de 2008

O domingo de Kenji Ueta

As janelas estão abertas e duas enormes árvores parecem querer invadir a sala. No asfalto, sentido JK-centro, a palavra “DEVAGAR” até que é levada a sério. Já para quem sai da avenida Paraná e entra na Itororó, encontra uma reta convidativa até a JK. Sem redutores de velocidade e sem pardais. Por isso, é perigosamente comum carros e motos rasgarem a avenida em assustadora velocidade numa via quase no centro da cidade.

O tempo é quente, mas o vento, mesmo leve, tem força para mexer com os galhos mais finos. O sol é forte, se esparramando sobre as copas das árvores do Bosque dos Pioneiros ou Bosque 2, como é chamado por todo mundo. Agora, quase 9 da manhã ainda há pessoas caminhando em torno dele. Duas horas antes, o local estava tomando de gente de idades e pesos variados indo e vindo, caminhando e correndo. No final do dia, eles voltam.

Se agora tivesse uma trilha sonora de Paul Mauriat, que morreu em novembro do ano passado aos 81 anos, e se fosse possível dar um “mute” no ronco dos motores, a imagem à minha frente teria o poder de varrer as preocupações e criar o ilusório campo de paz e tranqüilidade.

Nesta sala, entre dezenas de fotos de Maringá em preto e branco nas paredes, uma me leva a fazer comparação com este cenário. A foto tirada pelo pioneiro Kenji Ueta, o primeiro fotógrafo da Cidade Canção, é da década de 50. Seu Kenji subiu em alguma construção na esquina da Duque de Caxias com a Brasil e conseguiu dar profundidade à fotografia, sendo possível ver a avenida principal até a praça Rocha Pombo.

Ruas sem asfalto, crianças brincando próximas ao canteiro central, homens na calçada, ou o que viria a ser calçada, os famosos Cadillac, dois jipes, uma charrete, bicicletas, casas baixas e uma enorme mata emoldurando a foto na parte superior. Tudo em harmonia. Novamente recorro a Paul Mauriat. Então, vou olhando mais detidamente. À esquerda da foto, muita gente na praça Raposo Tavares e instalados nela um circo e um parque de diversões.

Não perguntei ao seu Kenji, mas tenho certeza de que é uma tarde de domingo em Maringá. Reforço esta certeza ao ver as seis portas da Casa Paratodos fechadas. Então, substituo a orquestra do maestro francês e ponho no alto-falante da história da menina Maringá um ritmo mais apropriado para a ocasião: uma marchinha do Braguinha ou um sertanejo de raiz. Fico a imaginar o que os que virão vão dizer da gente ao olhar nossas fotografias e vídeos. E será que eles ainda terão o privilégio de ver o que vejo agora das minhas janelas?

(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 25 de novembro de 2007)

terça-feira, 3 de junho de 2008

O silêncio de Maringá



É na noite
Quando procuro o sono
Fecho os olhos
E tento ouvir
O silêncio de Maringá
Um silêncio que dura
A eternidade
De poucos segundos

Um motor ronca
Rompendo uma reta
Perdendo força
Nos meus ouvidos

Chega uma música
Em baixo volume
Sobe poderosa
E se perde na escuridão

Logo outros sons
Itinerantes de vozes
Passos e latidos
Vêem e seguem
Sem dar boa-noite

A noite passa veloz
O dia começa na madrugada
Acelerações e freios
Buzinas e máquinas
É a cidade de pé
Em movimento

Houve um tempo
Em que a cidade
Dormia mais cedo
Não vagava tanto
E acordava no horário

Tempo da poeira
Dos lampiões
Das casas de madeira
E portões de balaústres

A noite era de poucos
Só dos profissionais
Hoje o dia ficou pequeno
A noite é a extensão

É na noite
Quando procuro o sono
Fecho os olhos
E tento ouvir
O silêncio de Maringá
Um precioso silêncio
Um frágil silêncio
Que dura menos
Que a pureza do instante

A noite
Já não é mais noite
É só o dia sem sol
Entrando no outro dia

(Livro Maringânias - 2007 - Poesias comemorativas - Maringá 60 anos)

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Os bichos de estimação


Aqui, da minha janela, entre a mesmice do vai-e-vem dos carros, da gradativa invasão do concreto, da uniformidade das árvores e do interessante passeio dos humanos, continuo na observação.
Estou precisando aumentar o grau dos meus óculos e o cérebro já não está tão treinado para processar certas situações. Algo está sempre me escapando das retinas e para determinados fatos não estou dando a devida importância. Não sei se estou cansado ou seletivo. Ou o cansaço é que está me tornando seletivo?
O que outrora era impactante hoje não passa de um leve comentário. O que era difícil de assimilar agora é insignificante. Quase sem querer, faço uma triagem dos acontecimentos. Guardo o que me interessa por uns tempos. Aos poucos vou deixando para trás. Mas alguns episódios há muito estão comigo. Bons e maus.
São bichos de estimação que não consigo abandoná-los. É preciso conviver com eles, mantendo submersos os que querem ferir e trazendo à tona os que fazem bem para a alma. O tempo está passando depressa.
Tão depressa que o meu olhar se perde neste particular campo de visão. Ainda estou olhando para um movimento à direita e logo surge outro. Viro o pescoço e não consigo acompanhar. Mas não são intensas a necessidade e a expectativa de apreender tudo que está à minha volta. Nem sempre foi assim.
Neste mês, o meu amigo Mário Sérgio fez 50 anos. Até pouco tempo, a gente estava no Colégio Gastão Vidigal fazendo de conta que nossos 17 anos seriam eternos. Com o Nivaldo, o Edson, o Edsinho, o João Batista e o Miguel fabricamos sonhos e corremos atrás deles. Continuamos a correr, não com a velocidade de três décadas e meia atrás, mas estamos na pista.
Sob o sol ou à sombra de Maringá ou de outra cidade, essa turma vai contando sua história. Os inevitáveis sobressaltos, os sacolejantes períodos e as lágrimas pontuais não impedem que façamos uma bela história.
Esse capítulo adolescente é um dos que ficam guardados confortavelmente. É um dos bons bichos de estimação que volta e meia vem me visitar, que faz com que eu cante um parabéns cinqüentenário a um caro amigo como se brindasse a um tempo feliz que ficou emoldurado nos anos de 1970.
Porém, é mais do que isso: é um brinde a esse tempo, uma celebração ao agora. Mesmo que não seja possível se surpreender tanto, ainda que as novidades não causem tanta admiração e a previsibilidade seja constante, continuo observando e armazenando. Daqui a pouco vou falar deste tempo e fazer brindes octogenários. Quem viver verá.
Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 25/05/08
Foto: De Paula com os amigos Miguel, Edson, Nivaldo e Mário Sérgio

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Maringá como cenário

Entre dúzias de cervejas e tijolinhos de presunto e queijo, estávamos reunidos jogando conversa fora. Ou melhor, de forma descompromissada desfilávamos um mosaico de situações cotidianas. A eloqüência advinda do álcool proporcionava temas interessantes resultando em gostosas risadas. No meu canto, ouvia mais do que falava, o que não é comum para mim numa mesa de bar. À medida que o copo esvazia, minha verve se torna mais latente.

A presença de duas pessoas que vim a conhecer naquela hora talvez tenha sido a razão do meu quase mutismo inicial. Este é o tipo de inibição que não procuro combater. Falo à vontade quando estou ao lado de amigos. A chegada de estranhos me coloca na defensiva, mas que é rompida com facilidade.

E como o número de desconhecidos tem aumentado nos últimos anos em Maringá!! A gente não consegue mais identificar a maior parte das pessoas num ambiente. Éramos sete rodeando duas mesas quadradas com enormes logomarcas vermelhas ostentando o nome da cerveja. Som alto, ar enfumaçado, poucas mesas vazias, balcão repleto e bolas rolando nas duas mesas de sinuca.














Fim de mais um dia de verão numa das mais belas cidades do Brasil. Começo de noite no Jardim Alvorada, que nos anos 70 era chamado pejorativamente de Alvoroço pelos moradores de outros bairros. Num bar lotado, perto das 8 da noite, como ocorre neste horário na maioria dos mais de cem, espalhados pela Pedro Taques, Dr. Alexandre Rasgulaeff, Lucílio de Held, Sofia Rasgulaeff e outras avenidas que cortam o maior bairro da cidade, comentávamos sobre o progresso deste lugar.

As visões diferenciadas nos ajudam a compor um quadro mais preciso de Maringá e sua gente. A partir de relatos, como os de meus seis companheiros de mesa, de dramas, vitórias e derrotas e passagens interessantes, podemos entender com mais propriedade o espírito do povo maringaense que faz pulsar esta bela paisagem, formada de largas calçadas e avenidas, tendo como testemunha o perpétuo verde.














Maringá foi planejada. Uma leva de aventureiros motivou a Companhia de Terras a esquadrinhar o povoado. Quem chega primeiro toma água limpa, mas antes tem que matar a onça. Os primeiros maringaenses fizeram as duas coisas: abriram as matas e propagaram o paraíso.

Por isto, cá estamos nós: os filhos, os filhos dos filhos, gente que chegou nos anos 80, nos 90, que nasceu aqui, que chegou ontem, que está chegando. Desde o final dos anos 30 muita gente vem batalhando nestas paragens. A soma de vitórias e derrotas pessoais teve e está tendo como conseqüência esta Maringá de mais de 300 mil habitantes, um orgulho para todos nós.














E cá estou, bebendo e conversando com seis cidadãos desta cidade num bar do Jardim Alvorada. Como poderia estar no Maringá Velho, Operária, Miosótis, Zonas Dois, Quatro e Cinco, Borba Gato, Ebenezer, Cidade Nova e outros tantos nas mais de 200 vilas e loteamentos, grande parte devidamente asfaltada e arborizada.

Ou, quem sabe, poderia estar de cotovelos fincados num balcão do distrito de Floriano ou de Iguatemi. Ouço meu companheiro do lado dizer que seu pai trabalhou na Casa Júpiter, ali na Brasil, perto da Raposo Tavares, onde hoje existem várias lojas, e um outro lembra que aqui, onde pisamos agora, foi no início da década de 60 uma grande fazenda de café do doutor Alexandre Rasgulaeff.
Felizmente mantiveram o mesmo traçado do centro, como fizeram em todos os bairros: calçadas, ruas e avenidas largas e árvores em profusão. Uma competente e bela uniformidade. O que me faz recordar a recente visita de uma comitiva japonesa. Depois de rodarem por quase uma hora, os japoneses cutucaram o motorista avisando-o que já haviam passado por aqueles lugares.

Eles não sabiam que nossas avenidas têm a medida certa, o espaço ideal para o concreto e o verde. Uma harmonia para tirar qualquer oriental de sua decantada calma e sua comedida admiração.














Para o visitante, a Mandacaru, Pedro Taques, Teixeira Mendes, Riachuelo, Paissandu e Morangueira são as mesmas avenidas, assim como a 15 de Novembro e a Tiradentes, ou a Herval, Duque de Caxias e São Paulo. Para nós, que passamos diariamente por elas, não tem erro.



Casas, edifícios, árvores e flores nos servem como referencial, mas o menos avisado vai conseguir diferenciar somente a Colombo das demais. Com o passar dos anos, Maringá ficou mais encorpada. A madeira foi dando lugar ao cimento e já não é tão fácil olhar a linha do horizonte.

Portentosos edifícios cobrem o sol, tiram a cada dia um pouco da inocência desta cidade e se exibem de mãos dadas com o verde nos cartões postais. O maringaense não se engana com suas avenidas. Cada uma tem sua personalidade própria.

Quando chovia, depois da Colombo, tinha que pôr a bicicleta nas costas para poder chegar em casa. Colocava um saco plástico em cada pé e amarrava as canelas com barbante. Só tirava no centro, quando descia do ônibus. Ou o barro cobria todo o sapato. No sábado, tinha brincadeira dançante em muitas casas.

Na nossa vila podíamos entrar em qualquer uma. Fora, o pau comia. Carnaval no ginásio do Maringá Clube era uma loucura. Quem não era associado do Olímpico ou do Country ia lá. Depois levaram a festa para o Chico Neto, mas não teve mais graça.

A turma de sete na animada mesa falava sem parar. Quase todos ao mesmo tempo. Numa mesa de bar o papo demora um pouco para engatar, mas depois flui normalmente, ainda mais quando o assunto diz respeito a todos.

Maringá não foi um rio que passou em nossas vidas, como diz o poeta Paulinho da Viola. A Cidade Canção continua passando e a gente vai acompanhando até onde Deus quiser. O Grêmio campeão de 77? Sei o time completo : Vagner, Valdir, Nilo...Quer o banco também? O Didi jogava demais.

O João Paulino não usava manga comprida. Vivia nas obras dando dura nos operários. Subimos na Catedral, quando ainda estava em construção. Chamaram a polícia. Viram a gente com o uniforme do Gastão e só passaram um sabão. A Wanderléia foi cantar no Cine Horizonte com uma minissaia curtíssima. A moçada ficou babando. Em vez de mundo colorido a gente cantava fundo colorido.
A gente tomava batida de vodka e saía em seis no Corcel branco do pai de um amigo, filando festas de casamento no Country, Maringá Clube e restaurantes do centro. Festamos até às 4 da manhã no Canjão. Matamos o Tiro de Guerra no sábado. Mas não teve jeito. O sargento Klein mandou nos buscar em casa.

Eu levava um rádio-gravador enorme aos domingos no Parque do Ingá. Ficava deitado na grama com o som de Bee Gess nas alturas. Mesa animadíssima. Riso geral para cada lembrança. O curioso é que quando um falava, a gente entrava junto na história como se sentisse que alguns episódios tivessem sido copiados.

Um dos motivos que reforçam o companheirismo é descobrir as experiências comuns. Por isso, naquele bar, fomos mais companheiros do que nunca. Trocamos informações, remexemos gostosamente nas histórias em que atuamos como protagonistas, coadjuvantes ou meros espectadores. Passagens que fomos catalogando mentalmente em cada dia vivido em Maringá.














Situações corriqueiras que vão virando história, que adquirem intensidade com o passar do tempo. Afinal, estamos ajudando, orgulhosamente, a compor esta canção chamada Maringá. O relógio na parede, embutido na caixa de cigarros, brinde da multinacional, colou os ponteiros no 12 fazendo com que retornássemos da viagem.

As três saideiras para os sete cidadãos que nasceram em Maringá, ou que aqui chegaram nas fraldas, estão no fim. Portas vão sendo fechadas. Amanhã começa tudo de novo. Cada um vai, novamente, lutar para o sustento da família e, consequentemente, para o desenvolvimento deste lugar. A gente não pode parar. Maringá não pára.







(Livro Da minha janela, publicado em 2003)

segunda-feira, 19 de maio de 2008

O maringaense nas ruas


1 - Motorista maringaense não gosta de dar seta.
Quem está atrás que se vire.

2 - Motorista maringaense gosta de colocar rabicho no carro.
Mesmo que nunca vá engatar nada nele. O rabicho é tão somente um acessório de defesa. Ou de ataque, dependendo da manobra.

3 - Motorista e pedestre maringaenses gostam de quebrar garrafas de sidra no asfalto, principalmente no Ano Novo.
A forma mais idiota de se despedir do ano que passou e saudar o que chega. Vidros picados no asfalto é a materialização da ignorância.

4 - Motorista, carona, motoqueiro e pedestre maringaenses gostam de sujar a praça da Catedral com papéis, latas e garrafas, principalmente nos finais de semana.
O desrespeito ao bem comum em estado latente. O quintal e os cômodos da casa dessa gente devem ser um lixão.

5 - Motorista maringaense gosta de fazer racha na Itororó e na Nóbrega, principalmente nas madrugadas de sábado.
É o espírito assassino sendo transferido para as rotações de um motor.

6 - Motorista maringaense gosta de estacionar em fila dupla em frente aos colégios na entrada e saída dos alunos.
Rapidez e comodidade para embarcar os pequenos, nem que para isso o trânsito fique caótico. Desrespeito aos demais motoristas. É a lei do salve-se quem puder. A coletividade que se exploda.

7 - Motorista e carona maringaenses gostam de jogar papeis, plásticos e bitucas pela janela.
Ação de quem entende que a cidade não é sua. Apenas o carro. Pelo fato dessa gente ser um péssimo exemplo, desgraçadamente seus filhos fazem o mesmo, perpetuando os porcos de geração para geração.

8 - Ciclista maringaense não teme o perigo, pedalando tranqüilo na Brasil, Herval, Duque, São Paulo, Paraná...
Até o início dos anos de 1980 era possível pedalar sem perigo nestes locais. O tempo passou, mas a grande maioria ainda não se deu conta disso. Se o seu pai, seu tio ou qualquer outro parente faz isso, tome a bicicleta dele.

9 - Motorista maringaense gosta de estacionar no espaço reservado aos ônibus.
Desobediência ao estabelecido.

10 - Motorista maringaense gosta de deixar o trânsito lento na Tiradentes nos finais de semana.Uma questão de exibicionismo. Quem não acredita que o automóvel seja o rabo do pavão do homem – ou da mulher – vá domingo à tarde na Tiradentes e comprove.

11 - Motorista maringaense gosta de som alto.
Uma questão de exibicionismo e de compartilhar o áudio que a maioria não quer ouvir.

12 - Motorista e carona maringaenses não gostam de usar cinto nos finais de semana.
Como se o respeito às leis de trânsito só valesse de segunda a sexta-feira e acidentes não acontecessem nos finais de semana.

13 - Motorista maringaense gosta de estacionar o carro no meio de duas vagas.
Egoísmo e falta de inteligência.

14 - Pedestre maringaense não gosta de atravessar na faixa de segurança. Mas está aprendendo.
Ignorância ou fascínio pelo perigo.

15 - Motoqueiro maringaense geralmente não respeita semáforo durante a noite
Desrespeito e falta de amor à vida. Mais ainda: pressa do pessoal que ganha por entrega. Então, saía da frente e, mesmo que o sinal esteja verde, deixe os malucos seguirem.

16 - Ciclista maringaense não sabe qual a função do semáforo.
Eles não deveriam nem pedalar na área central. Então, que o Anjo da Guarda proteja esta gente.

17 - Motorista e motoqueiro maringaenses não gostam de esperar o semáforo de ciclo visual apagar totalmente o vermelho para seguir.
Ansiedade, pressa e desrespeito.

18 - Motorista maringaense gosta de pôr o carro na calçada nos finais de semana para lavá-lo com água tratada.
Dupla falta de conscientização. Garanto que devem chorar quando assistem algo referente a ações predatórias do homem.

19 - Motorista maringaense gosta de sair de ré das “escamas de peixe” da Brasi.l
Desconhecimento da lei e desrespeito

20 - Motorista maringaense não tem costume de buzinar.
Ainda.

Se você não está em nenhuma destas categorias, parabéns. Continue assim. Você é um exemplo para muita gente, principalmente para seus filhos. Se todos agissem como você, Maringá não teria chegado ao pré-caos no trânsito.

Cabrito na horta





















Patrono, manda-chuva, mandava brasa
Pedro Caveira era o tipo de fazer tremer
Nunca foi de levar desaforo para casa
Não havia homem que podia lhe conter

Na faca, na bala, no pau, na porrada
Pedro Caveira se valia da truculência
A cada dia mais uma área era dominada
Demarcava seu espaço sem pedir licença

Para Pedro Caveira era vencer ou morrer
Dos homens ganhava o temor, o respeito
Das mulheres conseguia tirar o prazer
Era na marra, na força, de qualquer jeito

Entre as tantas moçoilas submissas
Havia uma que ocupava seu coração
Era a bela , doce e estonteante melissa
Morena brejeira exalando amor e paixão

Por ela é que Pedro Caveira se derretia
Um caso conhecido em toda comunidade
Quando ela chegava seu sorriso se abria
Para ela, ele pedia só amor e fidelidade

Na vida acontecem coisas inesperadas
Por uma bronca sem grande repercussão
Caveira teve que tirar férias forçadas
Fora de circulação, um ano de prisão

Um dia antes de se entregar à justiça
Pediu ao bando a palavra em penhor
Chorou abraçado à querida Melissa
Que lhe fez juras de eterno amor

Chamou num canto o seu preferido
O humilde amigo Zequinha Terceiro
Lhe pediu em lágrimas, comovido
Que cuidasse de todo o seu terreiro

Zequinha levou à risca aquele pedido
Por sua conta incluiu a bela morena
Virou chefão do pedaço, cabra temido
E botou as guampas no Pedro Caveira

Passou o tempo, cumprida a sentença
Caveira quis retornar ao antigo ninho
Mas ninguém mais quis a sua presença
E até Melissa lhe negou os carinhos

Humilhado, pobre, com medo de morrer
Pedro Caveira abandonou aquela cidade
Com ódio de Zequinha de endoidecer
Hoje perambula na estrada da infelicidade

O mundo sempre foi e será dos espertos
Zequinha agora é senhor, do alto escalão
O pai e o avô na vida não deram certo
Mas ele é o terceiro, o chefe, um campeão

E finalizando essa incrível história
Pra você não ser tomado de revolta
E pra que a tua vida não seja inglória
Não deixe o cabrito tomar conta da horta

Letra: Antonio Roberto de Paula
Melodia: Helington Lopes
História contada por Cláudio Viola
A música "Cabrito na horta" , em versão reduzida, participou do Femucic, em 2005, com apresentação do grupo Receita do Samba

sexta-feira, 16 de maio de 2008

Tudo que se fala, tudo que está escrito



O outdoor me faz um convite
O homem com dedo em riste
Meu diz para comprar, fazer um curso
E quando mudo o percurso
Surge outra propaganda
Então entro nessa ciranda
Para provar que estou vivo
Acabo de fechar um livro
De histórias de vencedores
De quem passou pelas dores

Saí agora da sala do cinema
O herói armou um estratagema
E exterminou a bandidagem
Mais uma sangrenta mensagem
Vingador, mas com alma de coroinha
E no final ainda beijou a mocinha

A notícia interpretada na TV
Para daqui a pouco se esquecer
O fato contado no jornal
Para o bem ou para o mal
Não interessa qual a direção
Vai depender da situação

O homem rasga o verbo na tribuna
E consegue a aceitação na urna
Os belos gestos e as palavras polidas
Deixando as maldades escondidas
Em todo canto verdades absolutas
As pernas da mentira não são curtas

Por isso, já não acredito
Em tudo o que está escrito
Em tudo o que se fala
E em tudo o que já foi dito

quarta-feira, 30 de abril de 2008

Inseguros caminhos desta vida


Segure a onda, segure a barra. Segure a língua. Em boca fechada não entra mosquito. Assim você se livra do dito pelo não dito. Seguro morreu de velho sentado em frente ao mar, com a cabeça vazia e o bolso cheio. Segure a bolsa, segure o bolso, segure a vida.
O pré-datado vai aterrissar na conta zerada. Manda segurar até o próximo pagamento. Apele, aplique seu arsenal de lamentos. Segure o emprego. A coisa está nebulosa e qualquer carteira assinada é bilhete de loteria. Mas vá maneirando na média com o patrão. Senão vão sacar que você está inseguro.
Afinal, todo trabalhador está preocupado. Até o patrão está vendo o barco ir a pique. Então, demonstre segurança. Seu seguro de vida está em dia? Assegure-se de que esteja.
São tantos os percalços nas esquinas e tanta insegurança nas faixas. Já não existem faixas etárias liderando as mortes. Do 0 ao 70 está tudo equilibrado.
Por isto, assegure que os seus vão ter um futuro seguro. Depois, saia assobiando por aí: “Agora posso morrer contente/ A seguradora vai dar uma boa grana pra minha gente/ Já não me preocupo com meu dia-a-dia/ Ajeitei o futuro da minha família”. A melodia pode ser aquela do biscoito São Luiz. Quem já passou dos 40 sabe qual é.
Brincadeirinha. Você está forte e rijo e vai atravessar fácil do segundo para o terceiro milênio. Mas, por precaução, coloque a apólice na documentação. Segure seus sentimentos. Não despeje seus amores e nem prolifere seus ódios. Coloque doses homeopáticas nas emoções. Quem mostra o coração é safenado. Segure os elogios para dar e receber.
Verifique se você não está exagerando ao destinar loas e previna-se quanto as que lhe são endereçadas. Subir, ficar ou descer degraus. A vida é uma escada. Chegar ao alto, sentar no meio ou estatelar-se são as opções. Mantenha sempre à mão o corrimão da segurança. Pode acreditar, é assim que funciona. Palavra de quem tenta se segurar e planeja se assegurar qualquer dia destes.
Livro Da minha janela, publicado em 2003
Obra de Paul Klee - Park bi Lu - 1938

sábado, 19 de abril de 2008

Quando a poesia é necessária

Matisse - A margem -1907
E durante uma terrível crise de idéias, criatividade, posicionamentos e identidade, ele desligou todos os sensores. Sentado no banco da praça, onde a grama e as árvores vicejavam, olhando as pessoas que ziguezagueavam preocupadas, compôs estes versos que lhe serviram para colocar numa destas melodias que nunca tocam nas rádios e se ouve numa madrugada de insônia:
“Cante aquele verso que embalava nossa adolescência, declame aquela trova que elevava nossos corações, transporte-nos aos campos juvenis, onde a tristeza não vai nos atingir.
Fabrique metáforas para ocupar nossos desvarios, ilumine esta estrada ilusória, diga que o sofrer foi varrido do nosso meio e do nosso tempo e risque do mapa o porto do futuro. Assim sobrevivo ou me curo.
Ajude-me a desviar dos males, beba comigo nas rodas dos bares, ensina-me a ser livre ou de subterfúgios vamos encontrar nossos lugares. A negritude do céu se amplia na robotização humana. A idéia é passar o tempo ou torná-lo mais ameno, tendo a
vontade tirana de viver, pelo menos. Assim me absolvo ou me condeno.
Converse na língua abstrata para que só nós possamos compreender, desligue a técnica cerebral e ative a intuição animal. O mal que a boca retrata, o bem travado na garganta. Enquanto presas as palavras castas, as serpentes soltas encantam. Tantas. Assim me entrego ou me garanto.
Conserve os olhos ou recupere os que ficaram no tempo, enfraquecidos diante da dureza dos dias. Abrir a porta, a atitude temerária. A contenda importa, mas não é necessária. Assim me fecho ou vou à luta. Faço poesia para desligar, despejo palavras sobrepostas para encontrar as respostas e flexiono verbos para exercitar sentimentos. Terapia salutar, repondo energias para continuar.”
Livro Da minha janela, publicado em 2003

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Horas velozes

Não posso perder tempo. Tenho que ir ao banco, à banca, à loja e ao mercado. Tenho que pagar contas, ir ao posto de gasolina, tomar um refrigerante light e estacionar num lugar sem flanelinhas.

Tenho que levantar os olhos para ver as belas palmeiras da avenida Paraná, estes prédios cobrindo o sol e olhar ainda mais para cima para enxergar esta cruz que parece colada ao céu.

Tenho que andar na faixa de segurança, mas não confiar que os motoristas vão tirar o pé. Tenho que tomar cuidado com os carros que saem das avenidas Herval, Duque de Caxias e São Paulo e viram à direita na Brasil.

Tenho que enxugar este suor, parar na calçada e observar esse povo que caminha para todos os lados. Pessoas em geral, gente genuína. Minha matéria prima. No volante, tenho que esperar o último gomo vermelho desaparecer para prosseguir, mas tenho que prestar atenção no pedestre que acha que a faixa é só dele mesmo o semáforo estando aberto para os veículos. Tenho que ter paciência no cruzamento da São Paulo com a Horácio Raccanello e cair fora da Colombo no início da noite.

Não posso perder tempo. Tenho que falar ao telefone, perder peso, engraxar os sapatos, lembrar de datas importantes, cumprimentar quem eu conheço e, por educação, fazer um sinal com a cabeça para quem eu nunca vi mais gordo ou magro. Tenho que comer frutas e folhas, beber água e fazer exercícios. Tenho que caminhar no Parque do Ingá, Bosque 2 e em qualquer lugar que tenha uma pista onde não corro o risco de ser atropelado.

Tenho que ouvir músicas, ler jornal, ver TV, acessar internet, abrir e responder e-mails, ir ao cinema e à locadora de filmes, visitar e receber visitas, passear para não muito longe, não ficar até muito tarde para não cansar e não ficar cansado. Tenho que dormir bem, sonhar muito e cumprir pelo menos dez por cento destes sonhos.

Tenho que amar bem mais, rezar bem mais, enraivecer bem menos, terminar de ler dois livros, escrever tanta coisa, esquecer outras tantas, manter a calma, pedir perdões, conversar mais com quem está de escanteio e desfocar quem dá aulas particulares para Deus. Tenho que ver os amigos pelo menos duas vezes por semana, beber cerveja gelada, comer queijo com azeite e orégano, rir até do que é sem graça e apreciar o céu alaranjado no fim de tarde que, de onde o avisto, parece que vai descer no Fim da Picada. Os carros passam voando na avenida Itororó em direção à zona sul. As horas voam, a noite é fugaz e a manhã chega fazendo cobranças. Não posso perder tempo.

Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 13/04/08

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Embalos natalinos



Acordou cedo no dia 24. Afinal, véspera de Natal é um dia cheio. Foi com a família ao supermercado. Um trânsito horrível de carrinhos por entre as gôndolas. Parece que todo mundo saiu às compras no mesmo dia e horário.

Cerveja, refrigerante, carne e doce. Bela carga e alta conta. Almoçou dando uma segurada na bebida. Tomou só três latinhas para estar inteiro na ceia. Presentes para a mulher, filhos, empregada, pai, mãe, sobrinhos e afilhados.

Folhas de cheques voando. Canhoto carregado. Na primeira semana de janeiro a gente começa a pensar no assunto, pensa. Hoje é dia de comemorar. Aliás, mais umas latinhas não vão me tirar do eixo, analisa. Escurece e o nosso personagem toma um banho pra relaxar. Ou para adquirir um pouco mais de sobriedade.

Desde o meio-dia ele vem comemorando e é preciso estar em boas condições para suportar uma longa noite em que bebidas dos mais diferentes teores alcoólicos e comidas variadas vão estar à disposição. Nosso amigo já passou a fase de aquecimento. Entra de sola na festa. Definitivamente incorporou o espírito natalino. Distribui beijos, abraços e votos de Feliz Natal com um desprendimento que quem o conhece sabe que isto é coisa do álcool.

Frango, leitoa e carneiro. Maionese, salpicão e mandioca. E as latinhas vazias sendo rapidamente substituídas pelas cheias. Está alegre e preocupado em não ficar de fogo. Não percebeu que já ficou. O estridente Xororó invade o ambiente com aquele CD apelativo de fim de ano. Canta junto e se emociona com o Hei irmão, vamos seguir com fé... E segue com fé para mais um gole.

Passa da meia-noite. Quatro botões da camisa estão fora de suas respectivas casas. Desapertou dois furos da cinta e o comparecimento no banheiro é a cada quinze minutos. A leitoa mutilada, com o focinho pra cima e a arcada dentária à mostra, lhe embrulha o estômago. Dá a mão para um monte de gente, ouve piadinhas sobre seu estado, mas não tem ânimo para retrucá-las.

Acorda às 10 e tenta traçar o roteiro da noite anterior. Vai certinho até a leitoa de dentes de fora. A lembrança faz a barriga virar um vulcão. Dedo na goela, meia-hora sentado naquele objeto ovalado suando por todos os lados. Ácido efervescente, comprimido para dor de cabeça e um banho gelado.

Nosso herói está quase pronto para mais um dia de festas. Sente que já pode iniciar a maratona correspondente ao dia de Natal propriamente dito. Jura pra si que vai se segurar. O juramento é quebrado no meio da frase. Caramba, é Natal. Eu estou bem, a família está bem, estou ao lado das pessoas que amo, então, é importante que haja este escapismo controlado para se contrapor ao mundo autofágico em que a inversão de valores corrompe a alma e destrói o espírito.

Momentos assim são um oásis, uma dádiva, um sinal para sabermos e entendermos que ainda há esperança para a humanidade. A filosofada lhe deu um efeito bastante positivo. Sentiu-se superior e agradecido. Superior por ter tido a clarividência de sacar aquilo e a inteligência para transformar em palavras. E agradeceu a Deus pela oportunidade de ter uma família e amigos. Acordou às 4 da manhã com a garganta feito um Saara disposto a beber o Atlântico. Quis mentalmente repetir a frase, mas não conseguiu.

(Livro Da minha janela, publicado em 2003)
Pintura: Moscovo I - 1916 - Kandinsky

terça-feira, 25 de março de 2008

Campeonatos da vida



- Tem fogo?
- Tenho.
- Obrigado. Quer fumar?
- Não, fumei agora.
- Que fila, não?
- Já entraram uns trinta.
- E são só cinco vagas.
- Eu tô aqui de bobeira. Não tenho experiência.
- Trabalhei só uns três meses nisso, mas não tem mistério.
- Então você tem mais chances do que eu.
- Sei não. Depois dos 40 o pessoal tem má vontade.
- Que 40 nada. Com 35 já te olham meio atravessado.
- Faz tempo que você tá parado?
- Você diz: sem registro?
- É.
- Uns três anos.
- Eu já faz quatro. Só bico.
- Igual eu. Já vendi cartela de bingo, confecções, fita K-7. Até pão feito em casa eu já entreguei de bicicleta. Agora tô ajudando um amigo a construir uma casa. Não manjo nada. Fico o dia inteiro empurrando carriola e carregando balde de massa.
- Eu tô recolhendo jogo de bicho. O duro é que nunca fui bom de moto. Já passei cada sufoco. A gente tem horário. Sabe como é, né?
- Me avisa quando você for sair deste trampo.
- Tá a fim de encarar?
- Não, é pra um sobrinho meu. O cara é bom de moto e fica o dia inteiro coçando lá em casa.
- Tá, mas do jeito que a coisa anda, acho que não vou sair tão cedo.
- O que você fazia? Qual era a tua profissão de verdade?
- Jogador de futebol.
- Cê tá brincando?
- Não, é sério.
- Jogou onde?
- Interior de São Paulo.
- Em que time?
- Num monte. No Bragantino, Marília, Garça, Linense, Jaboticabal, Paraguaçuense...
- Você jogou no Bragantino?
- Mas saí um pouco antes do Luxemburgo chegar. Lembra daquele time que foi campeão paulista em 90? Tinha o Mauro Silva, Alberto, Mazinho, Gil Baiano, o Tiba...
- Lógico que lembro. Ganhou do Novorizontino na final. Gol do Tiba.
- Pois é. Joguei com aquele pessoal todo.
- Sério?
- Só que fui dispensado um pouco antes. Mas me considero um campeão paulista.
- Como é que é teu nome?
- No futebol a turma me chamava de Índio.
- Não vai me dizer que você é o Índio que jogou no Coritiba, que fez o gol do título brasileiro de 85, na final com o Bangu, no Maracanã?
- Não, aquele é o meu xará.
- O Londrina também tinha um...
- Não, nunca joguei lá.
- Já sei. Você é o zagueiro Índio que começou aqui, no Grêmio Maringá, e virou Ademir no Atlético Mineiro.
- Também não. Este é bem mais novo do que eu.
- Ah, me desculpe, mas não tô lembrado de você.
- Lembra a final do Paulistão de 85?
- Se lembro. O meu São Paulo detonou a Portuguesa. O Cilinho era o treinador. Tinha o Muller, o Silas, o Sidnei... Um timaço. Mas, o que é que tem a ver?
- Joguei a preliminar daquela decisão.
- Como é que eu vou me lembrar de preliminar de decisão?
- Cara, o Morumbi estava lotado. Fiz uma jogada pela lateral...
- Você jogava de lateral?
- Na direita.
- Então você é o Índio que começou no Santos, passou pelo Palmeiras, foi para o Goiás...
- Não, não. Este é outro. Deve estar jogando ainda. Mas como eu estava falando, avancei pela lateral passei por dois e cruzei na medida para o nosso centroavante fazer de cabeça. O Morumbi veio abaixo. Acho que fui um injustiçado. Cruzava melhor do que o Cafu.
- Grande vantagem cruzar melhor do que o Cafu.
- Acho que perdi pelo menos uns quinze anos da minha vida atrás da bola. Não tenho nem a 7ª Série.
- Não esquenta, não. Pelo menos você conheceu muita gente. Valeu como experiência de vida. Melhor do que eu. Fiquei afundado nesta cidade, conheço meio mundo aqui e não consigo um trampo de 300 paus.
- Você trouxe referências?
- Um monte. Mas acho que não vou conseguir emprego nem com o prefeito indicando.
- Tem que ter fé.
- Dê uma olhada para trás. Tem mais de cinqüenta na fila. Como é que você vai competir? Pode crer que tem cara formado aí atrás.
- Formado e que fala inglês.
- E morou nos Estados Unidos e na Europa.
- E não tem mais que 25 anos.
- Vou cair fora da fila.
- Agüenta aí.
- Quer um conselho: sai da fila também. É perda de tempo.
- Não, vou esperar. Vai que o cara lembra de mim.
- Esquece. O que tem de Índio jogando por aí e você é o Índio mais desconhecido de todos. Eu, que acompanho futebol, não me lembro de você. Imagine se eles vão saber quem você é. Além do mais, eles não estão precisando de gente pra cruzar bola.
- É, vamos embora. Tem uma loja de calçados que tá precisando de um vendedor e um faturista.
- Vendedor e o quê?
- Faturista.
- Vamos lá que eu vou pedir esta vaga de vendedor. Cê foi campeão alguma vez?
- Só de torneio início. Mas na 2ª Divisão Paulista nosso time chegou entre os quatro.

- Existem pessoas que nasceram para ser campeãs. Outras, não. Entram somente como figurantes.
- É a vida, meu caro, é a vida.


(livro Da minha janela, publicado em 2003)

segunda-feira, 17 de março de 2008

Ao Facci, com saudades

O afável Antonio, que vivia a brincar com as letras, partiu na segunda-feira, dia 10. O meu xará fechou a janela serenamente e foi fazer versos em outros lugares. A literatura nos fez amigos, mas nunca consegui deixar de chamá-lo de seu Antonio. Nossas conversas, invariavelmente, eram sobre poesias, crônicas e histórias que poderiam parar em livros. O divertido Antonio iluminava qualquer ambiente.
Em dezembro passado ele meu autografou seu último livro “Paraíso e outros contos”. E foi naquele mês, num sarau, que tive a honra de vê-lo declamar uma poesia que fiz em homenagem a Maringá chamada “Teus longos verões”. Procurei imagens daquele dia. Revi fotos e vídeo do poeta Antonio, feliz, falando da sua cidade numa reunião de amigos.
O Trópico de Capricórnio atravessando teu coração, terra vermelha arroxeada. As tuas matas tropicais com os teus longos verões. Vermelho-roxo coração, mata e calor dos trópicos, sol intenso e brilhante. Vejo Antonio declamando, trazendo a emoção que cada palavra exigia. Tenho tudo documentado. Mais: tenho tudo guardado no coração.
O boa-praça Antonio, que fazia dos encontros que promovia ou em que comparecia uma celebração, se despediu sem aviso prévio. Aproveitou seus últimos dias fazendo o que mais gostava: organizando eventos e recebendo amigos. Sua razão de viver era unir pessoas em torno de algo que realmente valesse a pena. Antonio soube viver.
No seu cartório, clientes e poetas, escrituras e poesias viveram em harmonia. A estante lotada de livros na sala onde dava expediente e recebia os amigos materializava a paixão pelas letras. Seus versos em mais de uma dezena de publicações mostram seu talento e amor pela poesia. Os amigos que conquistou, de todos os cantos e idéias, comprovam o quanto é bom viver na busca da paz e do entendimento.
Antonio carregava na palma da mão sua Academia, sempre falando com orgulho e satisfação dos escritores, das conquistas, das reuniões e dos projetos. E agora a gente fica contando histórias do Antonio poeta, vereador, deputado, cartorário, nascido na paulista Cedral em 1941, maringaense do distrito de Floriano e que formou uma bela família. A gente fica preenchendo o vazio com ternas recordações do digno Antonio.
Recordações como naquela noite de dezembro, quando o vibrante Antonio declamou os últimos versos da poesia sobre a Cidade Canção: Puxo a felicidade para cá. Nem sei se é verdadeira, mas faço a ode costumeira e sigo a buscar emoções sob os teus longos verões. O poeta Antonio fechou a janela e entrou no coração da gente. Eternamente.

(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 16/03/08)

segunda-feira, 10 de março de 2008

Saudades do poeta

Antonio Facci
* 15/02/41
+ 10/03/08

sexta-feira, 7 de março de 2008

A trilha sonora da vida


As músicas compõem a partitura da minha vida. Diariamente, ainda que por alguns minutos, tenho que ouvir alguém cantando ou tocando um instrumento. O lado bom da minha quase ignorância musical é que me permito ouvir praticamente tudo sem nenhum pudor.
Para a maioria dos meus consangüíneos e dos mais próximos tenho uma música própria, duas, até mesmo um repertório completo. Como cada pessoa e cada música têm personalidades próprias, faço o casamento de ambas e as levo por aí.
Já para fazer os estribilhos dos meus dias, - e olha que são consideráveis janeiros -, me apossei de algumas músicas e fico enciumado quando alguém quer compartilhar, quer se associar comigo no gosto por uma delas. São exclusivas, penso que são exclusivas, porque elas se tornaram a minha eterna ligação com determinada pessoa, fato e época.
Essas músicas convivem harmoniosamente comigo. Eu as chamo de acordo com o meu estado de espírito. Mas trago outras canções sem saber exatamente a razão. São trechos, refrões, fragmentos. Às vezes, sem me dar conta, começo a assobiar ou cantarolar músicas de cantores e bandas que há muito deixaram de fazer sucesso ou já encerraram suas atividades terrenas.
E estas canções, algumas quase desconhecidas que inconscientemente as tornei inesquecíveis, surgindo avassaladoramente do nada, também trazem com elas pessoas e acontecimentos. Uma gente que na maioria das vezes pouco representou na minha vida e os fatos associados eu não os catalogo como marcantes. Ou não seria o contrário? Será que nesta minha infernal engrenagem eu fechei alguns acessos e quis que essas pessoas e suas histórias tivessem pouca ou nenhuma importância?
Detalhes assustadores vêm à mente quando me lembro de certos acordes ou quando ouço algum vinil ou CD requentado de artista ex-famoso. Alguma senha é ativada e libera a passagem. Então, posso sorrir ou sofrer novamente com variações de intensidade. Os sons irrompem dando sinal para me transportar por ambientes que eu julgava dizimados pelo tempo. Tempo, esse tirano inexorável que coloca a nós todos, feliz ou infelizmente, em pé de igualdade. Ou, mais dia menos dia, deitados em igualdade.
No fim das contas, a música nada mais é do que um eficaz exercício para a memória, fazendo liberar nossos adormecidos anjos e feras, na contínua interação com o presente e outros períodos. São melodias para relacionar com gente que está do nosso lado, que está longe e que já se foi. E na soma de ritmos, de arranjos, vozes e instrumentos, vou compondo a minha muito particular trilha sonora e ao mesmo tempo participando de outras.

(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 04/03/07)

segunda-feira, 3 de março de 2008

Ao som da canção da desesperança

Tempo de dores. Tempo de recolher e prantear jovens corpos. Uma mórbida assiduidade que leva à indiferença. A comoção diante de um corpo sem vida estirado na rua perdeu a força. A indignação de outrora é hoje apenas uma virada de pescoço e um ligeiro comentário. E a rua é liberada.

O perplexo foi trocado por um mísero levantar de sobrancelhas. E a vida segue. A morte de ontem, o sepultamento de hoje e o esquecimento de amanhã. Este é o real trajeto. Porque outro mártir está sendo preparado e a repetição faz a mente considerar normal o sangue imolado.
Porque as drogas avançam, poderosas, sem obediência aos limites. Elas entram em todas as casas sem escolher fachadas, em todas as famílias sem escolher perfis. Elas atravessam fronteiras, fincam bandeira, alastram possessões.

E os meninos e meninas são usados sem piedade, instrumentos dos disseminadores do vício. Meninos e meninas, frágeis e providenciais soldados involuntários na linha de frente de uma guerra geral e sem final.
Aumenta a fileira de cruzes. Corpos velados para tantos choros. Féretros que partem ao som da canção da desesperança. Vidas tomadas de meninos e meninas, tiradas de diferentes endereços, mas que tornam os sofrimentos comuns pela similaridade das histórias, fazem envelhecer precocemente e abrem eternas feridas. Lares dilacerados nas batalhas perdidas. Lágrimas secas de pais que na aridez da vida já não têm mais onde buscar explicações. Sobra-lhes a ponta da revolta.
Tempo de dores. Os depósitos humanos superlotados. Ninguém mais quer saber das notícias iguais sobre esses meninos e meninas que a cada dia vão sendo enjaulados para refinar o aprendizado. E a inocência vai rapidamente dobrando a esquina de suas vidas. Pobres meninos e meninas, habitantes do vale dos esquecidos.
Num mundo de difícil retorno, eles têm tantas tristes e loucas histórias para contar. Até quando terão tempo de contá-las? Sem lugar para os sonhos e desdenhando do presente, até quando viverão? O futuro é uma palavra que não existe.
Enquanto isso, os mercadores do mal ampliam seus territórios. Os predadores da infância, homens de sorriso sem alma, estão em todos os lugares, buscando os pequenos para deles tirarem a vida. Então vêm outros meninos e meninas para a sucessão de vítimas.
E os dias seguem dentro de uma absurda normalidade que a freqüente imolação causa tão somente uma sobrancelha alta, uma virada de pescoço e uma notícia lida como outras. E eles, os mensageiros da morte, sorriem satisfeitos. Tempo de dores.

(Texto publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 2 de março de 2008)

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Dadá e Lori

“Lori – Não fique encanado com o que aconteceu. Deixa de ser bobinho. Gosto de você e ponto final. Nunca entrei numas porque você tem 37 anos mais do que eu. Os meus amigos gostam de tirar uma, mas são gente fina. É o jeito deles. Quando eu dei risada junto foi porque achei a piada uma grande sacada. Eu te conheço, eu sei da tua força. Esta coisa de Viagra virou gozação geral. Neguinho passou dos trinta e já começam a falar que é preciso tomar. Também achei de mau gosto te chamarem de vovô. Dei uma dura neles e prometi que se fizerem isto de novo vou apelar. Tô com saudades de você. Você faz uma falta danada. Fico olhando pra aquela espreguiçadeira vazia e lembro quantas noites eu ficava sentada no chão com a cabeça repousada no seu joelho enquanto a gente assistia aqueles instrutivos documentários da GNT. Fiquei sabendo que você não passou bem na terça-feira. Garanto que foi a gota. Torço pra você melhorar desta bagaça. Por que não me ligou? Tua Dadá te ama muito e sabe que o contrário também é verdadeiro. Tire esta carranca de Lourival e venha ser o meu Lori. Saio com a turma quase todos os dias. Chapo legal tentando tirar você pelo menos algumas horas da cabeça. Mas não tá fácil, Lori. Quanto mais eu bebo, mais eu vejo você se aproximar com aqueles passinhos lentos e aquela cortesia que é só sua. Tô numa ressaca danada e rezo para este telefone tocar e você do outro lado da linha me dizer: “Como passou de ontem para hoje minha querida Dadá?” Lori: estou péssima, parei de ir à escola, tô matando a academia e o meu cartão de crédito tá estourado. Te amo. Tua Dadá.”

“Querida Dadá – Folgo em saber que ainda pensas em mim. Fiquei deveras preocupado ao saber, através desta missiva tensa e apaixonada, que estás deixando de cumprir teus deveres. Tu bem sabes do meu temor em relação ao álcool. Apavoro-me com a idéia de tu saíres com teus amigos e atravessares noites em claro bebendo e pouco se alimentando. Os anos vão te cobrar mais tarde. Hoje tu tens apenas 27, mas é preciso que prepares o teu futuro levando uma vida saudável no presente. Confesso que me entristeci sobremaneira com as saliências de teus caros amigos. Não ousei responder-lhes porque entendo ser minha altivez a melhor resposta. Busquei ignorá-los, que é onde se enquadra a minha índole. O meu afastamento abrupto e, garanto-lhe, momentâneo, foi para que eu me recolhesse e analisasse, isento de interferências, esta nossa relação. Concluí, minha querida, que os meus dias convergem para os teus, que, juntos, as nossas noites têm a mesma intensidade, que a minha vista do horizonte é a mesma que a tua, enfim, que os nossos sonhos se completam. Amo-te com todas as minhas forças, inclusive com aquelas a que tu te referiste, e mesmo quando o físico me impossibilitar de materializar esta paixão estarei com o coração transbordando de amor. Esta tua correspondência me encheu de felicidade. Poderia ligar-te, mas certamente não conseguiria exprimir todo o meu sentimento. Breve te encontrarei e peço-te que não preocupes com pequenos problemas. Um beijo do Lourival, ou, como tu preferes, Lori.”

(Livro Da minha janela, publicado em 2003)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Menino da porta de casa

Guga é como aquelas pessoas que parece fazer um tempão que a gente conhece, daquelas que não pedem licença e vão entrando. Guga carrega a humildade por onde vai, que aflora em todos os momentos.

Ou melhor, não precisa aflorar, já está presente nas suas palavras, no seu sorriso, no seu jeito de ser. Ele é daqueles meninos que a gente fica torcendo para dar certo na vida, que adotamos sem nenhuma razão aparente, que pedimos a Deus para guiar seus passos.

O ídolo surgiu no final dos anos de 1990, num esporte que tínhamos como maior referência apenas Maria Esther Bueno, que havia assombrado o mundo do tênis com sete títulos em Wimbledon no final dos anos 50 até meados dos 60. Infelizmente, ela reinou numa época em que a televisão era artigo de luxo e transmissões de jogos de tênis ou mesmo notícias sobre o esporte eram um sonho distante.

Então chegou Guga surpreendendo em 1997, criando a gugamania e, por conta das sucessivas conquistas nos anos seguintes, glorificado como um dos grandes ídolos nacionais. Num país repleto de vilões em todas as esferas, em que as usuais manchetes nos informam que a esperança é uma retórica cansada e inútil, Guga é o contraponto.

O manezinho da ilha, de sorriso tímido e olhar confiante fez a gente se orgulhar da nossa brasilidade em cada saque, em cada defesa, em cada ponto, nas vitórias, nos títulos.
Para se tornar um eterno ídolo do povo, atravessando gerações, superando o tempo não basta somente vencer.

É preciso vencer com dor, enfrentar tantas adversidades, tornar sublimes determinados momentos, pôr, além dos músculos, a alma no embate. E no final saber agradecer, dividindo a vitória com todos. Enfim, é necessário fazer emocionar e se emocionar. Guga foi tudo isso.

Suas lágrimas de despedida, agradecimento e perdão por não poder mais continuar foram mais um componente para fixá-lo permanentemente no coração do povo que, em sua maioria, não sabe todas as regras do tênis, os termos utilizados, as jogadas e as táticas.

Guga é ídolo independente do tamanho da bola que tivesse jogado. Ele só tomou emprestado o tênis para mostrar sua genialidade e carisma. Guga não precisa pedir perdão. A lágrima de agradecimento é nossa.

O que alimenta a paixão por qualquer esporte é o ídolo, aquele que consegue, com técnica e talento ganhar a admiração do público. Mas, eles são logos substituídos por outros que fazem mais e melhor. Poucos ficam para sempre. Guga ficou porque é como se fosse de casa, como aqueles meninos, eternos meninos, que a gente fica torcendo para dar certo na vida.

(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, em 17/02/08)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Rugas diante do sol

Domingo. Dito puxa a cadeira fora da área para pegar o sol das 8. Invariavelmente, senta naquela espreguiçadeira. Faz dois anos que está lá. Da casa, a avenida fica a uns cinqüenta metros. Hoje o movimento é fraco.

Carregando o peso de 78 anos, ele sobrevive de lembranças. Rosto vincado, mãos tortas e calejadas e passos miúdos, Dito sabe que está se despedindo. Às vezes vem a completa aceitação. Imagina dormir e ser levado no sonho final.

Em certos dias vem a rebeldia, a luta para continuar. Quando isto acontece, ele acorda mais disposto e se recusa a ficar mais de quinze minutos na cadeira. Anda pra lá e pra cá como se assim fosse possível obstruir o inexorável caminho. Seu corpo é uma dor única, ora aguda, ora dentro dos limites.

Quais limites? Ele sabe que é forte. Coisa ruim não morre fácil, fala para si enquanto ri para dentro. Quando foi que eu dei uma risada pra valer? Acho que foi nos 70 anos. A patroa ainda estava viva e com saúde. Juntaram todos em volta de um bolo com recheio de pêssego, cantaram parabéns, tiraram fotos e eu e a velha pegamos juntos na faca para dar o pedaço para o primeiro bisneto.

O menino já deve estar com uns 10 anos. Ele é filho do... Como esta memória me trai. O sol bate na cara e ele gosta. Passa a mão na testa, os dedos passeiam pelos ralos cabelos. Com a outra mão tampa os olhos. Para protegê-los do sol ou esconder as lágrimas?

Dito nunca foi homem de chorar, mas ultimamente está difícil conter. Acontecimentos de 30, 40 anos vêm visitá-lo. Ele mistura datas, coloca situações vividas separadamente numa mesma época, mas não importa. Essencialmente, o que vale agora é recordar, garimpar o que foi bom. O que ele não sabia e só agora descobriu é que era um homem de poder.

Dito podia ir e vir, comer o que quisesse, dormir a hora que quisesse. Hoje, estes poderes elementares lhe foram tirados. Ficou dependente e vigiado. Ele lutou tanto, tanto, para acabar descansando numa cadeira. Os minutos passam lentamente, o sol continua forte queimando o rosto de Dito, um velho como tantos que empurram a vida tendo o asilo como penúltima morada.

(Livro Da minha janela, publicado em 2003)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Um milhão daqui um tempo


Um lugar para milhares
Três centenas de milhares
E milhão daqui um tempo
Quando já estivermos fora

Um milhão daqui um tempo
Quando formos só história
Quando alguém fizer poesia
E for falar dos nossos dias

Um milhão daqui um tempo
Quando falarem do verde
E das flores que restarem
E buscarem nos relatos
Escritos, áudios e imagens
Vão fazer o nosso retrato
Para ver como a gente era
O que é que a gente fazia

Um milhão daqui um tempo
Verão os nossos arquivos
Vão julgar os nossos atos
Pesquisarão nos nossos livros
Vias, edificações e praças
Parques, lagos e jardins
Eles verão a nossa alma

Um milhão daqui um tempo
Quando já estivermos fora
Quando formos só história
Eles verão a nossa alma


(Livro Maringânias - Poesias comemorativas - Maringá 60 anos, publicado em 2007)

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Professorinha


Olhar assustado. Guarda-pó novo e branquíssimo. Mamãe caprichou. Completando a indumentária, o par de botinas e a calça curta de brim. Devidamente uniformizados, os cerca de trinta pirralhos aguardavam ansiosos a chegada da professora. Muitos ali já se conheciam e por isso as duplas, para ocupar as carteiras de dois lugares, iam sendo formadas naturalmente.
Do meu lado ficou o Zé Antonio, craque de bola, salva, estilingue e tudo o que exigisse preparo físico e pontaria. Menino ao lado de menina nem pensar. No início dos anos 60, a timidez era das maiores e não havia o incentivo das escolas para esta integração. A dona Mariinha, bela e loura no frescor de seus 20 anos, entrou na sala e aquelas três dezenas de cabecinhas se viraram.
Todos ficaram em pé. Esta reverência fazia parte dos costumes. A primeira professora de nossas vidas acabava de chegar. Não havia os prezinhos e por isso aquele dia se tornou um acontecimento. As imagens são nebulosas sobre o que aconteceu nas quatro horas seguintes daquela manhã e durante aquele 1964.
A dona Mariinha, assim que tínhamos de chamá-la e não de tia, como faz a garotada de hoje, era muito tranqüila, mas sabia ser enérgica. Realmente, ela nasceu para ensinar. A primeira professora é difícil esquecer. Aquela mulher que nos colocou um lápis entre os dedos, a mão sobre a mão da gente, nos levando a fazer contornos na primeira página dos nossos cadernos, nos encaminhando para o conhecimento.
A mestra, que com extensa régua apontando para o quadro negro, puxando a melodia do beabá, nos abrindo os canais do entendimento, ficará sempre na memória. Escolhi a dona Mariinha para homenagear a todos os que labutam no ofício de ensinar, os que fazem desta honrada profissão um sacerdócio. Perdi todo o contato com aquela turma do primeiro ano primário e nem sei por onde anda aquela professorinha. As felizes lembranças daqueles dias, contudo, não se apagam.
(Livro Da minha janela, publicado em 2003)

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Sagrados pioneiros



Maringá prima pela valorização de seus pioneiros.
A cidade é jovem e, por isso, muitos dos que chegaram nas décadas de 40 e 50 estão vivos e constantemente são homenageados pelo poder público e entidades.

Na maior parte das publicações há um indisfarçável interesse em romancear a história da Cidade Canção. Nos relatos, a máxima de César – Vini, vidi, vici (vim, vi, venci) – serve como modelo para contar a saga dos pioneiros.

Os embates políticos são retratados, em sua maioria, de forma novelesca, como se todos lutassem pelo desenvolvimento da cidade com desprendimento, apenas pelo ideal de servir à comunidade e não para o ganho e satisfação pessoais.

Nos depoimentos dos pioneiros não se verificam críticas contundentes à administração municipal, Câmara de Vereadores e a outros setores.

A atuação da Companhia de Terras, que passou a se chamar Companhia Melhoramentos Norte do Paraná, parece não merecer reparos. Os relatos convergem quase sempre para um único ponto: o da vitória com luta e garra. Certamente influenciados pelo mascaramento das informações históricas do Brasil até meados da década de 80, os historiadores fizeram de Maringá um lugar em que imperava a harmonia.

Pelo que se ouve e lê, os homens trabalhavam duro, mas com o semblante feliz e entoando a cantiga Maringá, de Joubert de Carvalho.

Esta visão distorcida de Maringá não pode ser debitada apenas a quem escreveu a história e a professores, estudantes, jornalistas e outros curiosos que hoje a reescrevem.

Para não ferir suscetibilidades, destinar críticas a quem não pode mais respondê-las e para não se vangloriar sob pena de tripudiar o fracasso de outros, os próprios pioneiros se encarregam de manter o mito da cidade formada em completa harmonia. Os filhos e netos mantêm esta chama viva. Os poetas caminham juntos neste objetivo.

Desfigurando a realidade, não são tomados depoimentos daqueles que vieram a Maringá e não prosperaram. E convenhamos, é difícil obter estas declarações. Também não foram divulgados registros daqueles que tiveram que devolver seus lotes à Companhia de Terras por falta de pagamento.

Torna-se impossível chegar a um número de famílias que não se adaptaram e foram tentar a sorte em outras regiões, dos que empobreceram, faliram, dos que morreram à mingua. Estas considerações se fazem necessárias para entender com mais precisão o desenvolvimento de Maringá e até mesmo para dar o devido valor aos que superaram as vicissitudes.

São muitas as perguntas sem respostas porque o que se encontra nos compêndios é apenas o produto final de Maringá. Lá está a boa informação. Um filtro na história. Como se a Cidade Canção tivesse chegado ao estágio atual somente por obra e graça de uma leva de homens sérios e trabalhadores cingidos por Deus.


(Livro A história de um cabo de José, de Maria e de todos os Santos, publicado em 2004)

segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Vivo e belo


Que me vê assim tão vivo
Não sabe o que corre além das veias
Dos músculos, órgãos e massas

Quem me vê assim tão belo é plácido
Não sabe o que está por trás deste sorriso torto
Destes olhos míopes
E destas palavras soltas

Quem me olha não me vê
Quem me toca não me sente

Nesta face sorridente
O bem e o mal se dão bem
Para bens, para males

O pensamento é um bicho solto
De possibilidades enormes
A vida é um riso torto
Visto por olhos disformes
Em mim tudo vive, nada é morto
Tudo pulsa, nunca dorme


(Dispersos versos errantes)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Eu incerto





Nada do que sei é certeza
Viajei sem sair do lugar
Nada do que vi me satisfez
Distribui amores sem nada levar

Saí buscando razões
Me perdi em evasivas
Aumentaram as interrogações
Acabaram minhas teses conclusivas

Sou corpo, alma e coração
Risos, lágrimas, abraços e adeus
Um a mais buscando explicação
Um ser, uma voz, uma vida, eu

(Anos 80 entrando nos 90)

Desventuras de um cliente sem força na conta-corrente



Você chega ao banco pouco antes das 11 horas, horário em que ele será aberto. Já encontra uma fila com trinta pessoas. Quando as portas são abertas, mais de vinte estão atrás de você. Você entra apressado porque sempre tem uns gaiatos que querem cortar a fila.
Gente apressada que está sacrificando o almoço para depositar e, principalmente, pagar contas e cobrir cheques. Pressa, mas é preciso paciência. Ou então, o melhor é chegar às 10 para arrumar um bom lugar na fila. É depois das 10 que muitas pessoas conseguem entrar pelas portas do fundo.
Não adianta reclamar. Você não é cliente personalizado, portanto não tem guichê próprio e nem vai ser atendido antes ou depois do expediente. E sem direito a cafezinho. Fique na sua porque o seu depósito é mensal. Você pega o pagamento, coloca na conta-corrente e em menos de uma semana evaporou.
Se é só pra isso, por que você continua a trabalhar com o banco? Simples: os pré-datados são moeda corrente neste país e não dá para abrir mão. Imaginou ter de encarar a secretária sisuda em um hospital numa emergência às 4 da madrugada sem o pré-datado? Ou quando o tanque está vazio e o pagamento longe? Lá vai outro pré e seja o que Deus quiser.
O histórico de sua conta-corrente é deprimente: um depósito e vinte cheques. O débito sempre superando o crédito. O limite do seu especial – não tão especial assim – supre a diferença. Você já tentou aumentar, mas o gerente, sempre lembrando das ordens da matriz, diz que pela movimentação é impossível.
Quando você vai pegar um talão, fazem uma conferência de Genebra para liberar. Você faz parte da massa que dá um lucro extraordinário aos bancos, mas individualmente... Então você está na fila pensando em todas estas coisas enquanto funcionários uniformizados transitam pelo cenário informatizado.
Coisa de primeiro mundo. À sua frente, as pessoas com ar de enfado já não têm mais para onde olhar. Você observa os documentos que elas levam. Calcula: se cada uma levar dois minutos para ser atendida, vou ficar 20 na espera. No mínimo. São mais de vinte guichês, mas para a fila que lhe destinaram somente dois funcionários estão no trampo.
As outras caixas funcionam apenas como enfeite. Mais atrás, vários bancários se movimentam. Você se pergunta por que eles não vêm para a frente. Paciência, não é o setor deles. Você se conforta ao olhar para trás. Mais de trinta esperam chegar a vez. Você dá até um sorrisinho disfarçado enquanto pensa que eles não vão sair antes do meio-dia. Aplique, não saia mais de casa, cuidado com o cartão, poupe, faça leasing, financiamento...
São tantos apelos nos grandes cartazes que você acha que está no prejuízo por não entrar em nenhum daqueles itens. Chega a sua vez. Os documentos na sua mão estão até um pouco úmidos. Você os entrega para a moça de blusa clara, botões até o pescoço e com penteado já preparado para a festa da noite, que diz: “Desculpe, senhor, mas não podemos receber. Depois do prazo, o pagamento deve ser efetuado apenas na seguradora. E não recebemos conta de luz.”


(Do livro Da minha janela, publicado em 2003)

Memórias de um Carnaval adolescente


Estamos no Carnaval de 1974. Olímpico e Country novamente se rivalizam para fazer os melhores bailes. Com decoração caprichada, os salões do Teuto Brasileiro, Centro Português, Maringá Clube e Acema também estão lotados. Quem é associado vai aos clubes, em pelo menos uma das noites. É uma tradição, quase uma obrigação.
Os jornais fazem ampla cobertura dos bailes. As marchinhas predominam. Sambas clássicos também são executados. Nada de sertanejo, jovem guarda, axé e pagode em ritmo acelerado. Durante meses os blocos prepararam suas fantasias. Há vários concursos. Quem não quer usar máscara, pintar a cara ou pôr roupas extravagantes vai de bermuda, camiseta e tênis Bamba.
O lança-perfume já é proibido. Proibido, mas difícil de fiscalizar. A festa vai até o amanhecer. A noite agitada termina com banhos de piscina. Os festejos do Momo começaram na sexta-feira e vão até a terça, entrando na quarta de Cinzas.
Continuamos ainda em 1974. A cidade ainda é Maringá, a região é central, o baile é de Carnaval. É o sábado de Carnaval. Mas o público não é sócio de clube, não tem fantasia, não bebe uísque e nem cheira lança-perfume. Estamos no Ginásio do Maringá Clube, batizado de Ginasião. É o baile do povão. A Prefeitura alugou o local e transformou a quadra em salão de baile. As arquibancadas são a extensão do salão. Ali se dança, descansa, se abraça e se amassa.
A folia começou às 10 da noite e vai passar das 5 da madrugada. A barra só parece ser pesada. A segurança é frouxa, não houve revista na entrada. A polícia conhece quem é quem e, portanto, não há necessidade de grande aparato. As marchinhas acionam a alegria. Os inevitáveis arranca-rabos começam e terminam rapidamente. Pessoas de todas as idades brincam no salão e nas arquibancadas.
As mulheres de blusa e short comportados e os rapazes de bermuda, sem camisas. O bar vende cerveja e destilados. A entrada nos sanitários é tumultuada. Casais se enroscam no chão, junto à parede. É a paixão e o álcool embalando o Carnaval.
Passa da meia-noite. O prefeito e a primeira dama chegam com o Rei Momo. O vocalista da banda anuncia as autoridades. Todos batem palmas. Eles estiveram em todos os clubes e não iam deixar o Ginasião de fora. Saem logo. Muita gente faz questão de cumprimentar e agradecer o prefeito e a sua, diga-se de passagem, bela esposa pela festa.
Depois de Máscara Negra vem a indefectível “Ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora, o dia já vem raiando meu bem e eu tenho que ir embora”. Amanhece, quase todo mundo a pé, em direção aos pontos de ônibus. Amanhã tem mais. Mas os bailes populares foram para outros lugares até acabarem de vez. O Ginasião ficou aqui, bem guardado.
(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná em 18/02/07)

terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Vida e bola

Queria ser Gerson. Nos meus sonhos eu era o Canhotinha de Ouro. Nas peladas, queria fazer como ele. Havia um problema: era destro. De tanto treinar, virei ambidestro. Não conseguia, contudo, fazer lançamentos de 30, 40 metros. Não conseguia organizar o meu time, não falava como ele e não tinha o espírito de liderança igual ao dele.

Quando o Brasil ganhou o tri, ganhei junto com o Gerson. O na final contra a Itália, o segundo, o que abriu o caminho para a goleada, teve a minha contribuição. Quando a bola sobreou para ele, depois da jogada de Jairzinho, na meia-lua da grande área, juntos soltamos a canhota, corremos, um ao lado do outro, de braços abertos. O Estádio Asteca nos aplaudiu, o Gerson e eu. Choramos e erguemos as mãos para o céu, eu e ele, quando soou o apito final.

Passou a Coppa de 70 e já não queria mais ser Gerson. As crianças são por demais inconstantes. Cansei de brincar de Gerson. Gerson ficou na história. Agora, queria ser Rivelino. Ser Gerson foi muito cansativo. Tinha que fazer lançamentos e gritar com todos os companheiros. Não sabia fazer nem uma coisa nem outra.
Mudei. Passei a ser Rivelino. Era só jogar mais adiantado e mandar a bomba de canhota. Fechava os olhos e me via num Morumbi lotado lutando com meus companheiros do Timão para quebrar o jejum de títulos. O Cortinhians perdia mais do que ganhava. No final, Riva era criticado pela imprensa e pela torcida. A Fiel já não o queria mais por lá. Sofríamos juntos. Acabaram destronando o Reizinho do Parque. Rivelino foi para as Laranjeiras e eu, na minha inconstância e pelo fato de ser corintiano acima de tudo, preferi ser outro craque. Passei as ser Sócrates. Minha técnica futebolística não ia além de uns golzinhos de bico. Mas queria fazer como o Magrão. Cheguei a dar alguns toques de calcanhar, todos sem objetividade, ao contrário do meu ídolo da ocasião, que fazia gols de costas para o goleiro e deixava os companheiros na cara do gol para concluir. Larguei mão de ser Sócrates quando seu gás acabou em 86 e ele errou o penalti contra a França.Já vinha me identificando com Careca. Queria ser igualzinho ao habilidoso e raçudo atacante do Guarani e do São Paulo. Vã tentativa. fazer gols como o Careca era impossível para um cara como eu, dono de um estilo tosco e desajeitado. Torci para que ele curasse do joelho em 82. Não deu. Naquela seleção inesquecível de Telê faltou meu ídolo. Chorei quando Paulo Rossi nos tirou o tetra, mas meu choro já vinha de antes.


Quis ser muita gente boa de bola. Estive no Canal 100 dando dribles como o Garrincha. Fui Falcão liderando a Roma no título de 80. Vesti vermelho e preto para ser Zico. Fui o artilheiro mineiro Reinaldo. Internacionalizei meus sonhos para ser Maradona e Platini. Só não tive a pretensão de ser Pelé. Nem em sonhos eu conseguiria.







Passei dos 40. Minhas flácidas e meu diminuto fôlego me impedem de tentar fazer algo parecido com o que meus ídolos faziam. Os sonhos já não são tão fantásticos porque já não estou mais neles. Sonho em preto e branco.

Sonho com um estádio que leva o nome de uma vila, um time vestido todo de branco e figuras negras fazendo mágicas. Sonho com um tiro de Paulo Borges de fora da área, a explosão de um Pacaembu comemorando o fim de uma era de suplícios, o fim de um tabu.



Sonho em múltiplas cores. No meu sonho desfilam meio-campistas de times históricos: Andrade, Adílio e Zico; Piaza, Zé Carlos e Dirceu Lopes; Dudu e Ademir da Guia; e Clodoaldo e Gerson.




Vagueio entre datas nada cronológicas. Abro espaço para Romário, Ronaldo e Rivaldo. A bola rola. O tempo e o lugar não são tão importantes. Por isto, eu sou o espírito do futebol. Sou onipresente. Não tenho cores definidas, portanto, não tenho adversários.








Sou o amor e a alegria que impulsionam a bola através dos tempos. Sou o garoto de sempre, que faz da inconstância na admiração uma forma de homenagear os mestres da bola. Sou o garoto de todas as idades que eterniza o futebol.

(Do livro Da minha janela, publicado em 2003)