quarta-feira, 30 de abril de 2008

Inseguros caminhos desta vida


Segure a onda, segure a barra. Segure a língua. Em boca fechada não entra mosquito. Assim você se livra do dito pelo não dito. Seguro morreu de velho sentado em frente ao mar, com a cabeça vazia e o bolso cheio. Segure a bolsa, segure o bolso, segure a vida.
O pré-datado vai aterrissar na conta zerada. Manda segurar até o próximo pagamento. Apele, aplique seu arsenal de lamentos. Segure o emprego. A coisa está nebulosa e qualquer carteira assinada é bilhete de loteria. Mas vá maneirando na média com o patrão. Senão vão sacar que você está inseguro.
Afinal, todo trabalhador está preocupado. Até o patrão está vendo o barco ir a pique. Então, demonstre segurança. Seu seguro de vida está em dia? Assegure-se de que esteja.
São tantos os percalços nas esquinas e tanta insegurança nas faixas. Já não existem faixas etárias liderando as mortes. Do 0 ao 70 está tudo equilibrado.
Por isto, assegure que os seus vão ter um futuro seguro. Depois, saia assobiando por aí: “Agora posso morrer contente/ A seguradora vai dar uma boa grana pra minha gente/ Já não me preocupo com meu dia-a-dia/ Ajeitei o futuro da minha família”. A melodia pode ser aquela do biscoito São Luiz. Quem já passou dos 40 sabe qual é.
Brincadeirinha. Você está forte e rijo e vai atravessar fácil do segundo para o terceiro milênio. Mas, por precaução, coloque a apólice na documentação. Segure seus sentimentos. Não despeje seus amores e nem prolifere seus ódios. Coloque doses homeopáticas nas emoções. Quem mostra o coração é safenado. Segure os elogios para dar e receber.
Verifique se você não está exagerando ao destinar loas e previna-se quanto as que lhe são endereçadas. Subir, ficar ou descer degraus. A vida é uma escada. Chegar ao alto, sentar no meio ou estatelar-se são as opções. Mantenha sempre à mão o corrimão da segurança. Pode acreditar, é assim que funciona. Palavra de quem tenta se segurar e planeja se assegurar qualquer dia destes.
Livro Da minha janela, publicado em 2003
Obra de Paul Klee - Park bi Lu - 1938

sábado, 19 de abril de 2008

Quando a poesia é necessária

Matisse - A margem -1907
E durante uma terrível crise de idéias, criatividade, posicionamentos e identidade, ele desligou todos os sensores. Sentado no banco da praça, onde a grama e as árvores vicejavam, olhando as pessoas que ziguezagueavam preocupadas, compôs estes versos que lhe serviram para colocar numa destas melodias que nunca tocam nas rádios e se ouve numa madrugada de insônia:
“Cante aquele verso que embalava nossa adolescência, declame aquela trova que elevava nossos corações, transporte-nos aos campos juvenis, onde a tristeza não vai nos atingir.
Fabrique metáforas para ocupar nossos desvarios, ilumine esta estrada ilusória, diga que o sofrer foi varrido do nosso meio e do nosso tempo e risque do mapa o porto do futuro. Assim sobrevivo ou me curo.
Ajude-me a desviar dos males, beba comigo nas rodas dos bares, ensina-me a ser livre ou de subterfúgios vamos encontrar nossos lugares. A negritude do céu se amplia na robotização humana. A idéia é passar o tempo ou torná-lo mais ameno, tendo a
vontade tirana de viver, pelo menos. Assim me absolvo ou me condeno.
Converse na língua abstrata para que só nós possamos compreender, desligue a técnica cerebral e ative a intuição animal. O mal que a boca retrata, o bem travado na garganta. Enquanto presas as palavras castas, as serpentes soltas encantam. Tantas. Assim me entrego ou me garanto.
Conserve os olhos ou recupere os que ficaram no tempo, enfraquecidos diante da dureza dos dias. Abrir a porta, a atitude temerária. A contenda importa, mas não é necessária. Assim me fecho ou vou à luta. Faço poesia para desligar, despejo palavras sobrepostas para encontrar as respostas e flexiono verbos para exercitar sentimentos. Terapia salutar, repondo energias para continuar.”
Livro Da minha janela, publicado em 2003

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Horas velozes

Não posso perder tempo. Tenho que ir ao banco, à banca, à loja e ao mercado. Tenho que pagar contas, ir ao posto de gasolina, tomar um refrigerante light e estacionar num lugar sem flanelinhas.

Tenho que levantar os olhos para ver as belas palmeiras da avenida Paraná, estes prédios cobrindo o sol e olhar ainda mais para cima para enxergar esta cruz que parece colada ao céu.

Tenho que andar na faixa de segurança, mas não confiar que os motoristas vão tirar o pé. Tenho que tomar cuidado com os carros que saem das avenidas Herval, Duque de Caxias e São Paulo e viram à direita na Brasil.

Tenho que enxugar este suor, parar na calçada e observar esse povo que caminha para todos os lados. Pessoas em geral, gente genuína. Minha matéria prima. No volante, tenho que esperar o último gomo vermelho desaparecer para prosseguir, mas tenho que prestar atenção no pedestre que acha que a faixa é só dele mesmo o semáforo estando aberto para os veículos. Tenho que ter paciência no cruzamento da São Paulo com a Horácio Raccanello e cair fora da Colombo no início da noite.

Não posso perder tempo. Tenho que falar ao telefone, perder peso, engraxar os sapatos, lembrar de datas importantes, cumprimentar quem eu conheço e, por educação, fazer um sinal com a cabeça para quem eu nunca vi mais gordo ou magro. Tenho que comer frutas e folhas, beber água e fazer exercícios. Tenho que caminhar no Parque do Ingá, Bosque 2 e em qualquer lugar que tenha uma pista onde não corro o risco de ser atropelado.

Tenho que ouvir músicas, ler jornal, ver TV, acessar internet, abrir e responder e-mails, ir ao cinema e à locadora de filmes, visitar e receber visitas, passear para não muito longe, não ficar até muito tarde para não cansar e não ficar cansado. Tenho que dormir bem, sonhar muito e cumprir pelo menos dez por cento destes sonhos.

Tenho que amar bem mais, rezar bem mais, enraivecer bem menos, terminar de ler dois livros, escrever tanta coisa, esquecer outras tantas, manter a calma, pedir perdões, conversar mais com quem está de escanteio e desfocar quem dá aulas particulares para Deus. Tenho que ver os amigos pelo menos duas vezes por semana, beber cerveja gelada, comer queijo com azeite e orégano, rir até do que é sem graça e apreciar o céu alaranjado no fim de tarde que, de onde o avisto, parece que vai descer no Fim da Picada. Os carros passam voando na avenida Itororó em direção à zona sul. As horas voam, a noite é fugaz e a manhã chega fazendo cobranças. Não posso perder tempo.

Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 13/04/08

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Embalos natalinos



Acordou cedo no dia 24. Afinal, véspera de Natal é um dia cheio. Foi com a família ao supermercado. Um trânsito horrível de carrinhos por entre as gôndolas. Parece que todo mundo saiu às compras no mesmo dia e horário.

Cerveja, refrigerante, carne e doce. Bela carga e alta conta. Almoçou dando uma segurada na bebida. Tomou só três latinhas para estar inteiro na ceia. Presentes para a mulher, filhos, empregada, pai, mãe, sobrinhos e afilhados.

Folhas de cheques voando. Canhoto carregado. Na primeira semana de janeiro a gente começa a pensar no assunto, pensa. Hoje é dia de comemorar. Aliás, mais umas latinhas não vão me tirar do eixo, analisa. Escurece e o nosso personagem toma um banho pra relaxar. Ou para adquirir um pouco mais de sobriedade.

Desde o meio-dia ele vem comemorando e é preciso estar em boas condições para suportar uma longa noite em que bebidas dos mais diferentes teores alcoólicos e comidas variadas vão estar à disposição. Nosso amigo já passou a fase de aquecimento. Entra de sola na festa. Definitivamente incorporou o espírito natalino. Distribui beijos, abraços e votos de Feliz Natal com um desprendimento que quem o conhece sabe que isto é coisa do álcool.

Frango, leitoa e carneiro. Maionese, salpicão e mandioca. E as latinhas vazias sendo rapidamente substituídas pelas cheias. Está alegre e preocupado em não ficar de fogo. Não percebeu que já ficou. O estridente Xororó invade o ambiente com aquele CD apelativo de fim de ano. Canta junto e se emociona com o Hei irmão, vamos seguir com fé... E segue com fé para mais um gole.

Passa da meia-noite. Quatro botões da camisa estão fora de suas respectivas casas. Desapertou dois furos da cinta e o comparecimento no banheiro é a cada quinze minutos. A leitoa mutilada, com o focinho pra cima e a arcada dentária à mostra, lhe embrulha o estômago. Dá a mão para um monte de gente, ouve piadinhas sobre seu estado, mas não tem ânimo para retrucá-las.

Acorda às 10 e tenta traçar o roteiro da noite anterior. Vai certinho até a leitoa de dentes de fora. A lembrança faz a barriga virar um vulcão. Dedo na goela, meia-hora sentado naquele objeto ovalado suando por todos os lados. Ácido efervescente, comprimido para dor de cabeça e um banho gelado.

Nosso herói está quase pronto para mais um dia de festas. Sente que já pode iniciar a maratona correspondente ao dia de Natal propriamente dito. Jura pra si que vai se segurar. O juramento é quebrado no meio da frase. Caramba, é Natal. Eu estou bem, a família está bem, estou ao lado das pessoas que amo, então, é importante que haja este escapismo controlado para se contrapor ao mundo autofágico em que a inversão de valores corrompe a alma e destrói o espírito.

Momentos assim são um oásis, uma dádiva, um sinal para sabermos e entendermos que ainda há esperança para a humanidade. A filosofada lhe deu um efeito bastante positivo. Sentiu-se superior e agradecido. Superior por ter tido a clarividência de sacar aquilo e a inteligência para transformar em palavras. E agradeceu a Deus pela oportunidade de ter uma família e amigos. Acordou às 4 da manhã com a garganta feito um Saara disposto a beber o Atlântico. Quis mentalmente repetir a frase, mas não conseguiu.

(Livro Da minha janela, publicado em 2003)
Pintura: Moscovo I - 1916 - Kandinsky