terça-feira, 25 de março de 2008

Campeonatos da vida



- Tem fogo?
- Tenho.
- Obrigado. Quer fumar?
- Não, fumei agora.
- Que fila, não?
- Já entraram uns trinta.
- E são só cinco vagas.
- Eu tô aqui de bobeira. Não tenho experiência.
- Trabalhei só uns três meses nisso, mas não tem mistério.
- Então você tem mais chances do que eu.
- Sei não. Depois dos 40 o pessoal tem má vontade.
- Que 40 nada. Com 35 já te olham meio atravessado.
- Faz tempo que você tá parado?
- Você diz: sem registro?
- É.
- Uns três anos.
- Eu já faz quatro. Só bico.
- Igual eu. Já vendi cartela de bingo, confecções, fita K-7. Até pão feito em casa eu já entreguei de bicicleta. Agora tô ajudando um amigo a construir uma casa. Não manjo nada. Fico o dia inteiro empurrando carriola e carregando balde de massa.
- Eu tô recolhendo jogo de bicho. O duro é que nunca fui bom de moto. Já passei cada sufoco. A gente tem horário. Sabe como é, né?
- Me avisa quando você for sair deste trampo.
- Tá a fim de encarar?
- Não, é pra um sobrinho meu. O cara é bom de moto e fica o dia inteiro coçando lá em casa.
- Tá, mas do jeito que a coisa anda, acho que não vou sair tão cedo.
- O que você fazia? Qual era a tua profissão de verdade?
- Jogador de futebol.
- Cê tá brincando?
- Não, é sério.
- Jogou onde?
- Interior de São Paulo.
- Em que time?
- Num monte. No Bragantino, Marília, Garça, Linense, Jaboticabal, Paraguaçuense...
- Você jogou no Bragantino?
- Mas saí um pouco antes do Luxemburgo chegar. Lembra daquele time que foi campeão paulista em 90? Tinha o Mauro Silva, Alberto, Mazinho, Gil Baiano, o Tiba...
- Lógico que lembro. Ganhou do Novorizontino na final. Gol do Tiba.
- Pois é. Joguei com aquele pessoal todo.
- Sério?
- Só que fui dispensado um pouco antes. Mas me considero um campeão paulista.
- Como é que é teu nome?
- No futebol a turma me chamava de Índio.
- Não vai me dizer que você é o Índio que jogou no Coritiba, que fez o gol do título brasileiro de 85, na final com o Bangu, no Maracanã?
- Não, aquele é o meu xará.
- O Londrina também tinha um...
- Não, nunca joguei lá.
- Já sei. Você é o zagueiro Índio que começou aqui, no Grêmio Maringá, e virou Ademir no Atlético Mineiro.
- Também não. Este é bem mais novo do que eu.
- Ah, me desculpe, mas não tô lembrado de você.
- Lembra a final do Paulistão de 85?
- Se lembro. O meu São Paulo detonou a Portuguesa. O Cilinho era o treinador. Tinha o Muller, o Silas, o Sidnei... Um timaço. Mas, o que é que tem a ver?
- Joguei a preliminar daquela decisão.
- Como é que eu vou me lembrar de preliminar de decisão?
- Cara, o Morumbi estava lotado. Fiz uma jogada pela lateral...
- Você jogava de lateral?
- Na direita.
- Então você é o Índio que começou no Santos, passou pelo Palmeiras, foi para o Goiás...
- Não, não. Este é outro. Deve estar jogando ainda. Mas como eu estava falando, avancei pela lateral passei por dois e cruzei na medida para o nosso centroavante fazer de cabeça. O Morumbi veio abaixo. Acho que fui um injustiçado. Cruzava melhor do que o Cafu.
- Grande vantagem cruzar melhor do que o Cafu.
- Acho que perdi pelo menos uns quinze anos da minha vida atrás da bola. Não tenho nem a 7ª Série.
- Não esquenta, não. Pelo menos você conheceu muita gente. Valeu como experiência de vida. Melhor do que eu. Fiquei afundado nesta cidade, conheço meio mundo aqui e não consigo um trampo de 300 paus.
- Você trouxe referências?
- Um monte. Mas acho que não vou conseguir emprego nem com o prefeito indicando.
- Tem que ter fé.
- Dê uma olhada para trás. Tem mais de cinqüenta na fila. Como é que você vai competir? Pode crer que tem cara formado aí atrás.
- Formado e que fala inglês.
- E morou nos Estados Unidos e na Europa.
- E não tem mais que 25 anos.
- Vou cair fora da fila.
- Agüenta aí.
- Quer um conselho: sai da fila também. É perda de tempo.
- Não, vou esperar. Vai que o cara lembra de mim.
- Esquece. O que tem de Índio jogando por aí e você é o Índio mais desconhecido de todos. Eu, que acompanho futebol, não me lembro de você. Imagine se eles vão saber quem você é. Além do mais, eles não estão precisando de gente pra cruzar bola.
- É, vamos embora. Tem uma loja de calçados que tá precisando de um vendedor e um faturista.
- Vendedor e o quê?
- Faturista.
- Vamos lá que eu vou pedir esta vaga de vendedor. Cê foi campeão alguma vez?
- Só de torneio início. Mas na 2ª Divisão Paulista nosso time chegou entre os quatro.

- Existem pessoas que nasceram para ser campeãs. Outras, não. Entram somente como figurantes.
- É a vida, meu caro, é a vida.


(livro Da minha janela, publicado em 2003)

segunda-feira, 17 de março de 2008

Ao Facci, com saudades

O afável Antonio, que vivia a brincar com as letras, partiu na segunda-feira, dia 10. O meu xará fechou a janela serenamente e foi fazer versos em outros lugares. A literatura nos fez amigos, mas nunca consegui deixar de chamá-lo de seu Antonio. Nossas conversas, invariavelmente, eram sobre poesias, crônicas e histórias que poderiam parar em livros. O divertido Antonio iluminava qualquer ambiente.
Em dezembro passado ele meu autografou seu último livro “Paraíso e outros contos”. E foi naquele mês, num sarau, que tive a honra de vê-lo declamar uma poesia que fiz em homenagem a Maringá chamada “Teus longos verões”. Procurei imagens daquele dia. Revi fotos e vídeo do poeta Antonio, feliz, falando da sua cidade numa reunião de amigos.
O Trópico de Capricórnio atravessando teu coração, terra vermelha arroxeada. As tuas matas tropicais com os teus longos verões. Vermelho-roxo coração, mata e calor dos trópicos, sol intenso e brilhante. Vejo Antonio declamando, trazendo a emoção que cada palavra exigia. Tenho tudo documentado. Mais: tenho tudo guardado no coração.
O boa-praça Antonio, que fazia dos encontros que promovia ou em que comparecia uma celebração, se despediu sem aviso prévio. Aproveitou seus últimos dias fazendo o que mais gostava: organizando eventos e recebendo amigos. Sua razão de viver era unir pessoas em torno de algo que realmente valesse a pena. Antonio soube viver.
No seu cartório, clientes e poetas, escrituras e poesias viveram em harmonia. A estante lotada de livros na sala onde dava expediente e recebia os amigos materializava a paixão pelas letras. Seus versos em mais de uma dezena de publicações mostram seu talento e amor pela poesia. Os amigos que conquistou, de todos os cantos e idéias, comprovam o quanto é bom viver na busca da paz e do entendimento.
Antonio carregava na palma da mão sua Academia, sempre falando com orgulho e satisfação dos escritores, das conquistas, das reuniões e dos projetos. E agora a gente fica contando histórias do Antonio poeta, vereador, deputado, cartorário, nascido na paulista Cedral em 1941, maringaense do distrito de Floriano e que formou uma bela família. A gente fica preenchendo o vazio com ternas recordações do digno Antonio.
Recordações como naquela noite de dezembro, quando o vibrante Antonio declamou os últimos versos da poesia sobre a Cidade Canção: Puxo a felicidade para cá. Nem sei se é verdadeira, mas faço a ode costumeira e sigo a buscar emoções sob os teus longos verões. O poeta Antonio fechou a janela e entrou no coração da gente. Eternamente.

(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 16/03/08)

segunda-feira, 10 de março de 2008

Saudades do poeta

Antonio Facci
* 15/02/41
+ 10/03/08

sexta-feira, 7 de março de 2008

A trilha sonora da vida


As músicas compõem a partitura da minha vida. Diariamente, ainda que por alguns minutos, tenho que ouvir alguém cantando ou tocando um instrumento. O lado bom da minha quase ignorância musical é que me permito ouvir praticamente tudo sem nenhum pudor.
Para a maioria dos meus consangüíneos e dos mais próximos tenho uma música própria, duas, até mesmo um repertório completo. Como cada pessoa e cada música têm personalidades próprias, faço o casamento de ambas e as levo por aí.
Já para fazer os estribilhos dos meus dias, - e olha que são consideráveis janeiros -, me apossei de algumas músicas e fico enciumado quando alguém quer compartilhar, quer se associar comigo no gosto por uma delas. São exclusivas, penso que são exclusivas, porque elas se tornaram a minha eterna ligação com determinada pessoa, fato e época.
Essas músicas convivem harmoniosamente comigo. Eu as chamo de acordo com o meu estado de espírito. Mas trago outras canções sem saber exatamente a razão. São trechos, refrões, fragmentos. Às vezes, sem me dar conta, começo a assobiar ou cantarolar músicas de cantores e bandas que há muito deixaram de fazer sucesso ou já encerraram suas atividades terrenas.
E estas canções, algumas quase desconhecidas que inconscientemente as tornei inesquecíveis, surgindo avassaladoramente do nada, também trazem com elas pessoas e acontecimentos. Uma gente que na maioria das vezes pouco representou na minha vida e os fatos associados eu não os catalogo como marcantes. Ou não seria o contrário? Será que nesta minha infernal engrenagem eu fechei alguns acessos e quis que essas pessoas e suas histórias tivessem pouca ou nenhuma importância?
Detalhes assustadores vêm à mente quando me lembro de certos acordes ou quando ouço algum vinil ou CD requentado de artista ex-famoso. Alguma senha é ativada e libera a passagem. Então, posso sorrir ou sofrer novamente com variações de intensidade. Os sons irrompem dando sinal para me transportar por ambientes que eu julgava dizimados pelo tempo. Tempo, esse tirano inexorável que coloca a nós todos, feliz ou infelizmente, em pé de igualdade. Ou, mais dia menos dia, deitados em igualdade.
No fim das contas, a música nada mais é do que um eficaz exercício para a memória, fazendo liberar nossos adormecidos anjos e feras, na contínua interação com o presente e outros períodos. São melodias para relacionar com gente que está do nosso lado, que está longe e que já se foi. E na soma de ritmos, de arranjos, vozes e instrumentos, vou compondo a minha muito particular trilha sonora e ao mesmo tempo participando de outras.

(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 04/03/07)

segunda-feira, 3 de março de 2008

Ao som da canção da desesperança

Tempo de dores. Tempo de recolher e prantear jovens corpos. Uma mórbida assiduidade que leva à indiferença. A comoção diante de um corpo sem vida estirado na rua perdeu a força. A indignação de outrora é hoje apenas uma virada de pescoço e um ligeiro comentário. E a rua é liberada.

O perplexo foi trocado por um mísero levantar de sobrancelhas. E a vida segue. A morte de ontem, o sepultamento de hoje e o esquecimento de amanhã. Este é o real trajeto. Porque outro mártir está sendo preparado e a repetição faz a mente considerar normal o sangue imolado.
Porque as drogas avançam, poderosas, sem obediência aos limites. Elas entram em todas as casas sem escolher fachadas, em todas as famílias sem escolher perfis. Elas atravessam fronteiras, fincam bandeira, alastram possessões.

E os meninos e meninas são usados sem piedade, instrumentos dos disseminadores do vício. Meninos e meninas, frágeis e providenciais soldados involuntários na linha de frente de uma guerra geral e sem final.
Aumenta a fileira de cruzes. Corpos velados para tantos choros. Féretros que partem ao som da canção da desesperança. Vidas tomadas de meninos e meninas, tiradas de diferentes endereços, mas que tornam os sofrimentos comuns pela similaridade das histórias, fazem envelhecer precocemente e abrem eternas feridas. Lares dilacerados nas batalhas perdidas. Lágrimas secas de pais que na aridez da vida já não têm mais onde buscar explicações. Sobra-lhes a ponta da revolta.
Tempo de dores. Os depósitos humanos superlotados. Ninguém mais quer saber das notícias iguais sobre esses meninos e meninas que a cada dia vão sendo enjaulados para refinar o aprendizado. E a inocência vai rapidamente dobrando a esquina de suas vidas. Pobres meninos e meninas, habitantes do vale dos esquecidos.
Num mundo de difícil retorno, eles têm tantas tristes e loucas histórias para contar. Até quando terão tempo de contá-las? Sem lugar para os sonhos e desdenhando do presente, até quando viverão? O futuro é uma palavra que não existe.
Enquanto isso, os mercadores do mal ampliam seus territórios. Os predadores da infância, homens de sorriso sem alma, estão em todos os lugares, buscando os pequenos para deles tirarem a vida. Então vêm outros meninos e meninas para a sucessão de vítimas.
E os dias seguem dentro de uma absurda normalidade que a freqüente imolação causa tão somente uma sobrancelha alta, uma virada de pescoço e uma notícia lida como outras. E eles, os mensageiros da morte, sorriem satisfeitos. Tempo de dores.

(Texto publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, dia 2 de março de 2008)