segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Dadá e Lori

“Lori – Não fique encanado com o que aconteceu. Deixa de ser bobinho. Gosto de você e ponto final. Nunca entrei numas porque você tem 37 anos mais do que eu. Os meus amigos gostam de tirar uma, mas são gente fina. É o jeito deles. Quando eu dei risada junto foi porque achei a piada uma grande sacada. Eu te conheço, eu sei da tua força. Esta coisa de Viagra virou gozação geral. Neguinho passou dos trinta e já começam a falar que é preciso tomar. Também achei de mau gosto te chamarem de vovô. Dei uma dura neles e prometi que se fizerem isto de novo vou apelar. Tô com saudades de você. Você faz uma falta danada. Fico olhando pra aquela espreguiçadeira vazia e lembro quantas noites eu ficava sentada no chão com a cabeça repousada no seu joelho enquanto a gente assistia aqueles instrutivos documentários da GNT. Fiquei sabendo que você não passou bem na terça-feira. Garanto que foi a gota. Torço pra você melhorar desta bagaça. Por que não me ligou? Tua Dadá te ama muito e sabe que o contrário também é verdadeiro. Tire esta carranca de Lourival e venha ser o meu Lori. Saio com a turma quase todos os dias. Chapo legal tentando tirar você pelo menos algumas horas da cabeça. Mas não tá fácil, Lori. Quanto mais eu bebo, mais eu vejo você se aproximar com aqueles passinhos lentos e aquela cortesia que é só sua. Tô numa ressaca danada e rezo para este telefone tocar e você do outro lado da linha me dizer: “Como passou de ontem para hoje minha querida Dadá?” Lori: estou péssima, parei de ir à escola, tô matando a academia e o meu cartão de crédito tá estourado. Te amo. Tua Dadá.”

“Querida Dadá – Folgo em saber que ainda pensas em mim. Fiquei deveras preocupado ao saber, através desta missiva tensa e apaixonada, que estás deixando de cumprir teus deveres. Tu bem sabes do meu temor em relação ao álcool. Apavoro-me com a idéia de tu saíres com teus amigos e atravessares noites em claro bebendo e pouco se alimentando. Os anos vão te cobrar mais tarde. Hoje tu tens apenas 27, mas é preciso que prepares o teu futuro levando uma vida saudável no presente. Confesso que me entristeci sobremaneira com as saliências de teus caros amigos. Não ousei responder-lhes porque entendo ser minha altivez a melhor resposta. Busquei ignorá-los, que é onde se enquadra a minha índole. O meu afastamento abrupto e, garanto-lhe, momentâneo, foi para que eu me recolhesse e analisasse, isento de interferências, esta nossa relação. Concluí, minha querida, que os meus dias convergem para os teus, que, juntos, as nossas noites têm a mesma intensidade, que a minha vista do horizonte é a mesma que a tua, enfim, que os nossos sonhos se completam. Amo-te com todas as minhas forças, inclusive com aquelas a que tu te referiste, e mesmo quando o físico me impossibilitar de materializar esta paixão estarei com o coração transbordando de amor. Esta tua correspondência me encheu de felicidade. Poderia ligar-te, mas certamente não conseguiria exprimir todo o meu sentimento. Breve te encontrarei e peço-te que não preocupes com pequenos problemas. Um beijo do Lourival, ou, como tu preferes, Lori.”

(Livro Da minha janela, publicado em 2003)

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Menino da porta de casa

Guga é como aquelas pessoas que parece fazer um tempão que a gente conhece, daquelas que não pedem licença e vão entrando. Guga carrega a humildade por onde vai, que aflora em todos os momentos.

Ou melhor, não precisa aflorar, já está presente nas suas palavras, no seu sorriso, no seu jeito de ser. Ele é daqueles meninos que a gente fica torcendo para dar certo na vida, que adotamos sem nenhuma razão aparente, que pedimos a Deus para guiar seus passos.

O ídolo surgiu no final dos anos de 1990, num esporte que tínhamos como maior referência apenas Maria Esther Bueno, que havia assombrado o mundo do tênis com sete títulos em Wimbledon no final dos anos 50 até meados dos 60. Infelizmente, ela reinou numa época em que a televisão era artigo de luxo e transmissões de jogos de tênis ou mesmo notícias sobre o esporte eram um sonho distante.

Então chegou Guga surpreendendo em 1997, criando a gugamania e, por conta das sucessivas conquistas nos anos seguintes, glorificado como um dos grandes ídolos nacionais. Num país repleto de vilões em todas as esferas, em que as usuais manchetes nos informam que a esperança é uma retórica cansada e inútil, Guga é o contraponto.

O manezinho da ilha, de sorriso tímido e olhar confiante fez a gente se orgulhar da nossa brasilidade em cada saque, em cada defesa, em cada ponto, nas vitórias, nos títulos.
Para se tornar um eterno ídolo do povo, atravessando gerações, superando o tempo não basta somente vencer.

É preciso vencer com dor, enfrentar tantas adversidades, tornar sublimes determinados momentos, pôr, além dos músculos, a alma no embate. E no final saber agradecer, dividindo a vitória com todos. Enfim, é necessário fazer emocionar e se emocionar. Guga foi tudo isso.

Suas lágrimas de despedida, agradecimento e perdão por não poder mais continuar foram mais um componente para fixá-lo permanentemente no coração do povo que, em sua maioria, não sabe todas as regras do tênis, os termos utilizados, as jogadas e as táticas.

Guga é ídolo independente do tamanho da bola que tivesse jogado. Ele só tomou emprestado o tênis para mostrar sua genialidade e carisma. Guga não precisa pedir perdão. A lágrima de agradecimento é nossa.

O que alimenta a paixão por qualquer esporte é o ídolo, aquele que consegue, com técnica e talento ganhar a admiração do público. Mas, eles são logos substituídos por outros que fazem mais e melhor. Poucos ficam para sempre. Guga ficou porque é como se fosse de casa, como aqueles meninos, eternos meninos, que a gente fica torcendo para dar certo na vida.

(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná, em 17/02/08)

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Rugas diante do sol

Domingo. Dito puxa a cadeira fora da área para pegar o sol das 8. Invariavelmente, senta naquela espreguiçadeira. Faz dois anos que está lá. Da casa, a avenida fica a uns cinqüenta metros. Hoje o movimento é fraco.

Carregando o peso de 78 anos, ele sobrevive de lembranças. Rosto vincado, mãos tortas e calejadas e passos miúdos, Dito sabe que está se despedindo. Às vezes vem a completa aceitação. Imagina dormir e ser levado no sonho final.

Em certos dias vem a rebeldia, a luta para continuar. Quando isto acontece, ele acorda mais disposto e se recusa a ficar mais de quinze minutos na cadeira. Anda pra lá e pra cá como se assim fosse possível obstruir o inexorável caminho. Seu corpo é uma dor única, ora aguda, ora dentro dos limites.

Quais limites? Ele sabe que é forte. Coisa ruim não morre fácil, fala para si enquanto ri para dentro. Quando foi que eu dei uma risada pra valer? Acho que foi nos 70 anos. A patroa ainda estava viva e com saúde. Juntaram todos em volta de um bolo com recheio de pêssego, cantaram parabéns, tiraram fotos e eu e a velha pegamos juntos na faca para dar o pedaço para o primeiro bisneto.

O menino já deve estar com uns 10 anos. Ele é filho do... Como esta memória me trai. O sol bate na cara e ele gosta. Passa a mão na testa, os dedos passeiam pelos ralos cabelos. Com a outra mão tampa os olhos. Para protegê-los do sol ou esconder as lágrimas?

Dito nunca foi homem de chorar, mas ultimamente está difícil conter. Acontecimentos de 30, 40 anos vêm visitá-lo. Ele mistura datas, coloca situações vividas separadamente numa mesma época, mas não importa. Essencialmente, o que vale agora é recordar, garimpar o que foi bom. O que ele não sabia e só agora descobriu é que era um homem de poder.

Dito podia ir e vir, comer o que quisesse, dormir a hora que quisesse. Hoje, estes poderes elementares lhe foram tirados. Ficou dependente e vigiado. Ele lutou tanto, tanto, para acabar descansando numa cadeira. Os minutos passam lentamente, o sol continua forte queimando o rosto de Dito, um velho como tantos que empurram a vida tendo o asilo como penúltima morada.

(Livro Da minha janela, publicado em 2003)

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Um milhão daqui um tempo


Um lugar para milhares
Três centenas de milhares
E milhão daqui um tempo
Quando já estivermos fora

Um milhão daqui um tempo
Quando formos só história
Quando alguém fizer poesia
E for falar dos nossos dias

Um milhão daqui um tempo
Quando falarem do verde
E das flores que restarem
E buscarem nos relatos
Escritos, áudios e imagens
Vão fazer o nosso retrato
Para ver como a gente era
O que é que a gente fazia

Um milhão daqui um tempo
Verão os nossos arquivos
Vão julgar os nossos atos
Pesquisarão nos nossos livros
Vias, edificações e praças
Parques, lagos e jardins
Eles verão a nossa alma

Um milhão daqui um tempo
Quando já estivermos fora
Quando formos só história
Eles verão a nossa alma


(Livro Maringânias - Poesias comemorativas - Maringá 60 anos, publicado em 2007)