Domingo. Dito puxa a cadeira fora da área para pegar o sol das 8. Invariavelmente, senta naquela espreguiçadeira. Faz dois anos que está lá. Da casa, a avenida fica a uns cinqüenta metros. Hoje o movimento é fraco.
Carregando o peso de 78 anos, ele sobrevive de lembranças. Rosto vincado, mãos tortas e calejadas e passos miúdos, Dito sabe que está se despedindo. Às vezes vem a completa aceitação. Imagina dormir e ser levado no sonho final.
Em certos dias vem a rebeldia, a luta para continuar. Quando isto acontece, ele acorda mais disposto e se recusa a ficar mais de quinze minutos na cadeira. Anda pra lá e pra cá como se assim fosse possível obstruir o inexorável caminho. Seu corpo é uma dor única, ora aguda, ora dentro dos limites.
Quais limites? Ele sabe que é forte. Coisa ruim não morre fácil, fala para si enquanto ri para dentro. Quando foi que eu dei uma risada pra valer? Acho que foi nos 70 anos. A patroa ainda estava viva e com saúde. Juntaram todos em volta de um bolo com recheio de pêssego, cantaram parabéns, tiraram fotos e eu e a velha pegamos juntos na faca para dar o pedaço para o primeiro bisneto.
O menino já deve estar com uns 10 anos. Ele é filho do... Como esta memória me trai. O sol bate na cara e ele gosta. Passa a mão na testa, os dedos passeiam pelos ralos cabelos. Com a outra mão tampa os olhos. Para protegê-los do sol ou esconder as lágrimas?
Dito nunca foi homem de chorar, mas ultimamente está difícil conter. Acontecimentos de 30, 40 anos vêm visitá-lo. Ele mistura datas, coloca situações vividas separadamente numa mesma época, mas não importa. Essencialmente, o que vale agora é recordar, garimpar o que foi bom. O que ele não sabia e só agora descobriu é que era um homem de poder.
Dito podia ir e vir, comer o que quisesse, dormir a hora que quisesse. Hoje, estes poderes elementares lhe foram tirados. Ficou dependente e vigiado. Ele lutou tanto, tanto, para acabar descansando numa cadeira. Os minutos passam lentamente, o sol continua forte queimando o rosto de Dito, um velho como tantos que empurram a vida tendo o asilo como penúltima morada.
(Livro Da minha janela, publicado em 2003)
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