sexta-feira, 4 de abril de 2008

Embalos natalinos



Acordou cedo no dia 24. Afinal, véspera de Natal é um dia cheio. Foi com a família ao supermercado. Um trânsito horrível de carrinhos por entre as gôndolas. Parece que todo mundo saiu às compras no mesmo dia e horário.

Cerveja, refrigerante, carne e doce. Bela carga e alta conta. Almoçou dando uma segurada na bebida. Tomou só três latinhas para estar inteiro na ceia. Presentes para a mulher, filhos, empregada, pai, mãe, sobrinhos e afilhados.

Folhas de cheques voando. Canhoto carregado. Na primeira semana de janeiro a gente começa a pensar no assunto, pensa. Hoje é dia de comemorar. Aliás, mais umas latinhas não vão me tirar do eixo, analisa. Escurece e o nosso personagem toma um banho pra relaxar. Ou para adquirir um pouco mais de sobriedade.

Desde o meio-dia ele vem comemorando e é preciso estar em boas condições para suportar uma longa noite em que bebidas dos mais diferentes teores alcoólicos e comidas variadas vão estar à disposição. Nosso amigo já passou a fase de aquecimento. Entra de sola na festa. Definitivamente incorporou o espírito natalino. Distribui beijos, abraços e votos de Feliz Natal com um desprendimento que quem o conhece sabe que isto é coisa do álcool.

Frango, leitoa e carneiro. Maionese, salpicão e mandioca. E as latinhas vazias sendo rapidamente substituídas pelas cheias. Está alegre e preocupado em não ficar de fogo. Não percebeu que já ficou. O estridente Xororó invade o ambiente com aquele CD apelativo de fim de ano. Canta junto e se emociona com o Hei irmão, vamos seguir com fé... E segue com fé para mais um gole.

Passa da meia-noite. Quatro botões da camisa estão fora de suas respectivas casas. Desapertou dois furos da cinta e o comparecimento no banheiro é a cada quinze minutos. A leitoa mutilada, com o focinho pra cima e a arcada dentária à mostra, lhe embrulha o estômago. Dá a mão para um monte de gente, ouve piadinhas sobre seu estado, mas não tem ânimo para retrucá-las.

Acorda às 10 e tenta traçar o roteiro da noite anterior. Vai certinho até a leitoa de dentes de fora. A lembrança faz a barriga virar um vulcão. Dedo na goela, meia-hora sentado naquele objeto ovalado suando por todos os lados. Ácido efervescente, comprimido para dor de cabeça e um banho gelado.

Nosso herói está quase pronto para mais um dia de festas. Sente que já pode iniciar a maratona correspondente ao dia de Natal propriamente dito. Jura pra si que vai se segurar. O juramento é quebrado no meio da frase. Caramba, é Natal. Eu estou bem, a família está bem, estou ao lado das pessoas que amo, então, é importante que haja este escapismo controlado para se contrapor ao mundo autofágico em que a inversão de valores corrompe a alma e destrói o espírito.

Momentos assim são um oásis, uma dádiva, um sinal para sabermos e entendermos que ainda há esperança para a humanidade. A filosofada lhe deu um efeito bastante positivo. Sentiu-se superior e agradecido. Superior por ter tido a clarividência de sacar aquilo e a inteligência para transformar em palavras. E agradeceu a Deus pela oportunidade de ter uma família e amigos. Acordou às 4 da manhã com a garganta feito um Saara disposto a beber o Atlântico. Quis mentalmente repetir a frase, mas não conseguiu.

(Livro Da minha janela, publicado em 2003)
Pintura: Moscovo I - 1916 - Kandinsky

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito boa essa De Paula! Como já dizia minha avó Luzia, ao ler a carta que fiz a ela em homenagem aos seus 80 anos, "é tudo verdade, isso aconteceu mesmo".

O que você escreveu nesta crônica acontece, ou melhor, já aconteceu comigo. Principalmente, naquela parte da filosofia, onde, parece-me, que ocorreu com frequência nas ressacas, em que procuramos maneiras mil de tentar justificar algo talvez inexplicável.

Abração!