terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Vida e bola

Queria ser Gerson. Nos meus sonhos eu era o Canhotinha de Ouro. Nas peladas, queria fazer como ele. Havia um problema: era destro. De tanto treinar, virei ambidestro. Não conseguia, contudo, fazer lançamentos de 30, 40 metros. Não conseguia organizar o meu time, não falava como ele e não tinha o espírito de liderança igual ao dele.

Quando o Brasil ganhou o tri, ganhei junto com o Gerson. O na final contra a Itália, o segundo, o que abriu o caminho para a goleada, teve a minha contribuição. Quando a bola sobreou para ele, depois da jogada de Jairzinho, na meia-lua da grande área, juntos soltamos a canhota, corremos, um ao lado do outro, de braços abertos. O Estádio Asteca nos aplaudiu, o Gerson e eu. Choramos e erguemos as mãos para o céu, eu e ele, quando soou o apito final.

Passou a Coppa de 70 e já não queria mais ser Gerson. As crianças são por demais inconstantes. Cansei de brincar de Gerson. Gerson ficou na história. Agora, queria ser Rivelino. Ser Gerson foi muito cansativo. Tinha que fazer lançamentos e gritar com todos os companheiros. Não sabia fazer nem uma coisa nem outra.
Mudei. Passei a ser Rivelino. Era só jogar mais adiantado e mandar a bomba de canhota. Fechava os olhos e me via num Morumbi lotado lutando com meus companheiros do Timão para quebrar o jejum de títulos. O Cortinhians perdia mais do que ganhava. No final, Riva era criticado pela imprensa e pela torcida. A Fiel já não o queria mais por lá. Sofríamos juntos. Acabaram destronando o Reizinho do Parque. Rivelino foi para as Laranjeiras e eu, na minha inconstância e pelo fato de ser corintiano acima de tudo, preferi ser outro craque. Passei as ser Sócrates. Minha técnica futebolística não ia além de uns golzinhos de bico. Mas queria fazer como o Magrão. Cheguei a dar alguns toques de calcanhar, todos sem objetividade, ao contrário do meu ídolo da ocasião, que fazia gols de costas para o goleiro e deixava os companheiros na cara do gol para concluir. Larguei mão de ser Sócrates quando seu gás acabou em 86 e ele errou o penalti contra a França.Já vinha me identificando com Careca. Queria ser igualzinho ao habilidoso e raçudo atacante do Guarani e do São Paulo. Vã tentativa. fazer gols como o Careca era impossível para um cara como eu, dono de um estilo tosco e desajeitado. Torci para que ele curasse do joelho em 82. Não deu. Naquela seleção inesquecível de Telê faltou meu ídolo. Chorei quando Paulo Rossi nos tirou o tetra, mas meu choro já vinha de antes.


Quis ser muita gente boa de bola. Estive no Canal 100 dando dribles como o Garrincha. Fui Falcão liderando a Roma no título de 80. Vesti vermelho e preto para ser Zico. Fui o artilheiro mineiro Reinaldo. Internacionalizei meus sonhos para ser Maradona e Platini. Só não tive a pretensão de ser Pelé. Nem em sonhos eu conseguiria.







Passei dos 40. Minhas flácidas e meu diminuto fôlego me impedem de tentar fazer algo parecido com o que meus ídolos faziam. Os sonhos já não são tão fantásticos porque já não estou mais neles. Sonho em preto e branco.

Sonho com um estádio que leva o nome de uma vila, um time vestido todo de branco e figuras negras fazendo mágicas. Sonho com um tiro de Paulo Borges de fora da área, a explosão de um Pacaembu comemorando o fim de uma era de suplícios, o fim de um tabu.



Sonho em múltiplas cores. No meu sonho desfilam meio-campistas de times históricos: Andrade, Adílio e Zico; Piaza, Zé Carlos e Dirceu Lopes; Dudu e Ademir da Guia; e Clodoaldo e Gerson.




Vagueio entre datas nada cronológicas. Abro espaço para Romário, Ronaldo e Rivaldo. A bola rola. O tempo e o lugar não são tão importantes. Por isto, eu sou o espírito do futebol. Sou onipresente. Não tenho cores definidas, portanto, não tenho adversários.








Sou o amor e a alegria que impulsionam a bola através dos tempos. Sou o garoto de sempre, que faz da inconstância na admiração uma forma de homenagear os mestres da bola. Sou o garoto de todas as idades que eterniza o futebol.

(Do livro Da minha janela, publicado em 2003)

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