Passou a Coppa de 70 e já não queria mais ser Gerson. As crianças são por demais inconstantes. Cansei de brincar de Gerson. Gerson ficou na história. Agora, queria ser Rivelino. Ser Gerson foi muito cansativo. Tinha que fazer lançamentos e gritar com todos os companheiros. Não sabia fazer nem uma coisa nem outra.
Quis ser muita gente boa de bola. Estive no Canal 100 dando dribles como o Garrincha. Fui Falcão liderando a Roma no título de 80. Vesti vermelho e preto para ser Zico. Fui o artilheiro mineiro Reinaldo. Internacionalizei meus sonhos para ser Maradona e Platini. Só não tive a pretensão de ser Pelé. Nem em sonhos eu conseguiria.
Passei dos 40. Minhas flácidas e meu diminuto fôlego me impedem de tentar fazer algo parecido com o que meus ídolos faziam. Os sonhos já não são tão fantásticos porque já não estou mais neles. Sonho em preto e branco.
Sonho com um estádio que leva o nome de uma vila, um time vestido todo de branco e figuras negras fazendo mágicas. Sonho com um tiro de Paulo Borges de fora da área, a explosão de um Pacaembu comemorando o fim de uma era de suplícios, o fim de um tabu.Sonho em múltiplas cores. No meu sonho desfilam meio-campistas de times históricos: Andrade, Adílio e Zico; Piaza, Zé Carlos e Dirceu Lopes; Dudu e Ademir da Guia; e Clodoaldo e Gerson.
Vagueio entre datas nada cronológicas. Abro espaço para Romário, Ronaldo e Rivaldo. A bola rola. O tempo e o lugar não são tão importantes. Por isto, eu sou o espírito do futebol. Sou onipresente. Não tenho cores definidas, portanto, não tenho adversários.
Sou o amor e a alegria que impulsionam a bola através dos tempos. Sou o garoto de sempre, que faz da inconstância na admiração uma forma de homenagear os mestres da bola. Sou o garoto de todas as idades que eterniza o futebol.
(Do livro Da minha janela, publicado em 2003)
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