Uma madrugada qualquer. Lá pelas duas e meia. A mulher de sofridos 50 anos chega trêmula, levada por um “guarda-roupa” daqueles de fazer você correr sem nada ter feito. Sobe no púlpito. Ou seria no palco? O homem de camisa branca – parece que eles só usam camisa branca – pressiona a nuca da mulher, fecha os olhos e solta o temível berro: “Em nome de Jesus, se afasta. Ah, você não quer ir embora? Mas você vai. Eu ordeno que deixes o corpo desta mulher!”
Neste meio tempo, a coitada está estatelada. Dá umas estrebuchadas de acordo com a veemência do pedido do comandante da sessão de exorcismo. A câmera corta para os fiéis – ou seria para os colegas de trabalho – totalmente compenetrados. Alguns minutos de tensão e bingo!!! Bela, mas nem tanto, e faceira, aquela mulher que chegou hesitante tem um brilho no olhar e a certeza de ter sido curada. De todos os males. Os físicos e os da alma.
E o show, digo, a reunião continua. O “guarda-roupa” continua a trazer pessoas. O engravatado de camisa branca, como se tivesse um invisível cutelo nas mãos, segue derrubando homens e mulheres. E com igual eficiência os faz ficarem de pé. Deitaram doentes e levantaram felizes. A fita deve ter sido editada porque não se via a sacolinha. Plano dois. Câmera no estúdio.
Tá lá outro engravatado. Agora de paletó. Enquanto cita trechos bíblicos, no rodapé da telinha os números das contas bancárias vão surgindo. Com a sutileza própria dos vendedores obrigados a conviver com a feroz concorrência, ele sabe ganhar o cliente, levando a conversa para algo superior, bem maior do que reles 10 reais que vão ajudar muita gente e que pra você pouca diferença vai fazer.
Para a coisa não ficar repetitiva, um casal bonachão e sorridente vai dar um testemunho sobre o antes e o depois. Pelo desconforto do homem, que fica jogando o queixo para a direita, esquerda e para frente, percebe-se que ele só usou gravata no dia do casamento. A mulher interfere municiando-o de detalhes. O apresentador pouco fala.
Depois do relato emocionado, ele faz o comentário enquanto a mulher lacrimejante segura a mão do comparsa, digo, do companheiro. As contas bancárias continuam a aparecer. Passa das 3. Deve vir outro programa do mesmo estilo. Têm razão os pais que mandam seus filhos para a cama mais cedo. Depois da meia-noite é só pornografia.
(Livro Da minha janela, publicado em 2003)
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