quarta-feira, 7 de novembro de 2007

O Seu Milton não vai votar hoje

O sol desta primavera não me deixa ter lágrimas. Elas avisam de sua chegada, me preparo e quando estão prestes a irromper, o sol as seca. Bendita primavera que não me permite chorar nem ficar olhando para trás. Sigo com a vida. Benditas estações que me fazem seguir. Hoje é daqueles dias que preciso do sol desta primavera.

Vai dar um aperto no peito, que é onde se fabrica as lágrimas, elas vão passar pela garganta, sair pelos olhos e tentar escorrer pela face. Vou interromper o fluxo, mas desconfio que não será possível.Porque hoje seria um dia especial para o Seu Milton: dia de votar. O Seu Milton não vai votar hoje e não vai votar nunca mais. Em maio deste ano ele baixou à sepultura, deixando a gente com este aperto no peito, este nó na garganta e estes olhos marejados que ficam ainda mais tristonhos em dias como o de hoje.

Hoje, Seu Milton acordaria cedo, poria uma da suas camisas brancas, com três casas sem abotoar, uma calça escura e as sandálias. Tomaria um café, daria uma passada de olho no jornal, trataria dos passarinhos, sairia, cumprimentaria pelo menos umas quinze pessoas até o colégio localizado a umas quatro quadras de sua casa, votaria e voltaria contando alguma novidade deste passeio cívico.

Depois ficaria no portão tentando conseguir algum votinho a mais para o seu candidato.Antes de a doença tirar-lhe as energias, Seu Milton era atuante nas eleições. Ele e a companheira Rita, que fizeram uma história de quase cinqüenta anos, transformavam a casa em comitê, colavam cartazes e penduravam bandeiras do candidato e do partido.

Seu Milton ganhou e perdeu eleições, não tinha inimigos, só adversários circunstanciais.E fez muitas amizades, amizades que atravessaram eleições. Era comum as pessoas perguntarem: “Com quem vamos estar desta vez, Seu Milton?” Era uma liderança natural, destas que só o tempo pode criar, destas que o dia-a-dia vai reforçando a confiança.

Enquanto me recordo daquela figura magra e de cabelos brancos, tendo nas mãos um santinho do candidato, explicando a um vizinho como votar, percebo que as lágrimas estão chegando mais cedo. Parece que não haverá sol de primavera forte o suficiente para secá-las.Paciência. Os experimentados na difícil arte da perda me disseram que é assim que funciona.

Você coloca a dor num compartimento e esquece dela, mas às vezes ela quebra a fechadura e vem te fazer companhia. É o que está acontecendo hoje. “Com quem vamos estar desta vez, Seu Milton?” Sei muito bem o que o senhor faria hoje, mas o voto é secreto e aqui não é espaço para propaganda eleitoral. Só posso dizer que nós vamos estar sempre com o senhor, Seu Milton.

(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná em 29/10/06)

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