quarta-feira, 7 de novembro de 2007

O cidadão numerado

Era um cidadão comum, destes que você encontra em qualquer repartição pública, banco ou escritório, destes que você vê aos montes nas ruas. Era um cidadão coadjuvante, que batia palmas quando todos batiam, que não cortava filas quando todos cortavam e cedia seu lugar no ônibus para velhinhos, velhinhas, grávidas e quem mais ele percebesse que precisava de um assento.

Era um cidadão que usava camisas discretas, calças escuras, paletó preto e sapatos engraxados, pretos, de cordões. Seu relógio de dar corda se tornou parte do corpo. Os anos se passaram e ele só trocava a pulseira de couro. Era um homem que sorria paciente, ouvia com atenção, falava o pouco e o necessário, pagava as contas em dia, todos os impostos, contribuía com o dízimo, não dava carteirada, jamais estourou a conta corrente e amava a pátria.

Um cidadão que tinha um ar quase subserviente, de agradecimento contínuo, dava a impressão de ser uma honra estar ali. Saído do início do século 20, ele entrou no 21 com todos aqueles costumes, roupas e idéias. E com toda aquela fineza e educação.

Ficou noivo e pôs a aliança na mão direita, casou e passou para a esquerda. Casamento de papel passado, registro no cartório e bênçãos da igreja. Casamento para toda a vida. Cumpria os prazos da vacinação dos filhos e não faltava às reuniões na escola. Dirigia prudentemente, nunca perdeu pontos na carteira, trocou de carro só duas vezes. Em todas as férias freqüentou a mesma praia, teve conta no mesmo banco, a mesma religião, a mesma pasta de dentes, o mesmo antiácido e o mesmo itinerário.

Se alguém pudesse mexer nos seus bolsos, certamente encontraria um pente marrom de plástico, um espelhinho ovalado, a carteira com fotos antigas, documentos plastificados e orações. Suas maiores loucuras, talvez as únicas, aconteceram na mocidade: gostava de assobiar forte quando o cinema ficava no escuro, um pouco antes do início do filme, e pequenos porres de vinho que estimulavam algumas gargalhadas.

Sem rompantes e atrevimentos, a linearidade ditou o ritmo de sua vida. A linha reta que o pente desenhou no seu liso cabelo, todo puxado para a direita, foi a prova palpável desta espartana existência. Era um cidadão de frases feitas para cada ocasião, de uma simpatia calculada e os passos firmes num corpo ereto de quem sabia o que queria: queria andar absolutamente direito, sempre.

E assim foi, sem estardalhaço, sequer sobressaltos. Uma noite pôs o antigo pijama azul de listras finas, deitou e continuou dormindo. Hoje, é só um número inscrito numa fileira de números. Enquadrado e numerado. Absolutamente correto e comum.

(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná em 28/01/07)

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