“Conheço um velho ditado que é do tempo do zagais, diz que um pai trata dez filhos, dez filhos não trata o pai.” Começa assim a música Couro de Boi composta por Palmeira e Teddy Vieira nos anos de 1950, imortalizada pelas duplas Tonico e Tinoco e Tião Carreiro e Pardinho. A moda inicialmente é declamada. Depois, com os acordes da viola, é cantada e contada a história do velho pai que foi morar com o filho casado. Quem já passou dos 40 anos, mesmo não gostando da autêntica música sertaneja, deve ter ouvido.
Dias atrás, o Seu Chico foi buscar sua minguada aposentadoria num banco. Com um lado do corpo inerte, decorrência de um derrame no ano passado, o quase octogenário Chico, eletricista dos bons até os anos de 1980, aguardava sentado sua vez de receber pouco mais de 300 reais.
Camisa amarela de mangas compridas, calça marrom e sapatos pretos engraxados, Seu Chico era a resignação em pessoa. As instituições financeiras, dentro da sua completa isenção de sentimentos e máxima agressividade lucrativa, ainda não inventaram uma forma de transferir ou levar o dinheiro para os aposentados doentes ou com dificuldades para se locomover. Sorrisos nos cartazes de propaganda não vão esconder a indiferença. Então estava lá o pequeno Chico, no alto do seu, quando muito 1,60, com dificuldades para caminhar até o caixa e assinar o documento para a retirada.
Fazendo troça, o aposentado pergunta: “Já chegou a mil reais?”. Dona Lúcia sabe que ele está brincando e segue no ritmo: “Ainda não, mas qualquer dia desses o senhor chega lá.” Dona Lúcia, que entrou agora na história vem a ser a filha dele. Uma filha que ele adotou, ou melhor, foi adotado por ela. Seu Chico tem vários filhos, mas nenhum na cidade. E todos o ignoram completamente.
Eles se formaram, casaram, foram tentar a vida em outros lugares e Seu Chico ficou. Viúvo, foi largado num asilo. Um dia, sem suportar a rotina, fugiu. Foi encontrado por Dona Lúcia e pelo marido que o levaram para casa. Passados alguns dias, o convenceram a voltar ao asilo. Ele voltou, mas dias depois fugiu novamente. Para onde? Para a casa da filha postiça. E de lá não saiu mais.
Ela conta a história enquanto olha para aquela figurinha simpática e esquálida. Diz que de vez em quando Seu Chico puxa na memória fatos ocorridos há mais de quarenta, cinqüenta anos e os coloca no presente. Numa época de grandes dificuldades, os filhos de Chico são crianças que precisam de seus cuidados e proteção. Quando retorna da viagem no tempo, chora e ganha o conforto da filha adquirida na solidão. Ele recebe, ela põe o dinheiro na bolsa e sai arrastando o velho que não era dela, mas que agora é porque ela quer que seja. O trecho declamado de Couro de boi continua tão atual...
(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná em 25/02/07)
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