sábado, 10 de novembro de 2007

Desfile da miséria humana

A menina de 14 anos está apavorada. O repórter tenta saber o que ela estava fazendo na BMW roubada. Ela não diz coisa com coisa. Conta que o marginal conhecido como Sapatão a colocou à força dentro do carro. A história não é bem assim. Os comentários das pessoas que rodeiam o veículo crivado de balas é de que Sapatão é namorado da menina.

Os PMs pediram para que ele parasse. Em vez disso, deu uma ré e saiu em disparada pelas estreitas ruas. Tiros por todos os lados. Polvorosa num bairro da periferia paulistana. Sapatão desce do carro com a menina, se despede com um beijo e escapa por entre os telhados das minúsculas construções de alvenaria.

A polícia cai em cima da garota, quer saber quem é o cara. O interrogatório em plena rua é acompanhado por populares e repórteres de TV. Microfone na boca do tenente e na boca da menina. Ela confirma o namoro e o estilo de vida de Sapatão. Enquanto isto, outros PMs tiram telhas das casas procurando-o.

Controle remoto acionado. Agora a cena se passa em Curitiba. A moça dá depoimento dizendo que os traficantes estão na própria polícia. Se ela diz os nomes, eles não são revelados na matéria. Seu rosto recebe o efeito mosaico, o que o deixa todo quadriculado para esconder a identidade. Confessa que é uma viciada. Sua mãe diz que a filha chegou ao fundo do poço e pede ajuda.

A situação ficou pior. Depois de entregar os policiais, teme represálias. O enjoativo e pedante apresentador aparece na tela. Diz que a produção conseguiu para a moça uma clínica de recuperação no Nordeste e pede para o telespectador que não generalize. Aquela ladainha: “É preciso saber diferenciar os bons policiais dos maus”.

Nos outros canais o mundo cão passeia. Os personagens são sempre pessoas humildes, que se assustam diante dos microfones, mostram faces sofridas e são usadas sem saber. Garimpam-se reportagens na pobreza e aos policiais são dados superpoderes. É a busca da morbidez para satisfazer um público ávido que tranca as portas achando que a miséria humana ficou para fora.

(Livro Da minha janela, publicado em 2003)

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