quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Com a boca no mundo surdo

As pessoas estão fazendo mais uso da boca do que dos ouvidos. Todo mundo quer falar. Todos têm uma grande necessidade de expor suas idéias, desabafar ou contar vantagens e desvantagens. A maioria não consegue porque não há ouvintes. Às vezes, você está louco para dizer alguma coisa e quando começa a falar é interrompido.

A pessoa que estava naquela de escutar, te joga um caminhão de melancia e você sai mais carregado do que quando chegou. Você está com um baita problema. Aquilo te corrói. Você não dorme direito, come mal, fuma um cigarro atrás do outro e até sai das medidas ao tomar suas cervejas de final de tarde.

Você está literalmente arrebentado. Você precisa contar para alguém, pedir um conselho ou quer que simplesmente te ouçam. Alguém que fique parado olhando para sua cara com antenas ligadas sem dar nenhum piu. Algumas observaçõezinhas, tudo bem. Você faz uma lista das pessoas confiáveis.

Que lista mixuruca! Você botou fé só em duas pessoas. Aí chega a hora de escolher uma delas. As duas de uma vez nem pensar. Dá pra imaginar uma pessoa falando e duas só ouvindo? De jeito nenhum. Logo um mete a colher dizendo alguma asneira e vai te jogar pra escanteio ou te pegar pra Cristo.

Então você decide abrir seu coração para o seu amigo do peito, de longa data, amigo de fé, irmão camarada, de tantos caminhos, de tantas jornadas. Êta Robertão porreta. Deve ter feito mil confidências para Erasmo. Quando fizeram a música, os dois deviam estar pra lá de bêbados e transpirando emoção. Deixando o Rei de lado, você parte para o papo com seu amigo.

Nem dá tempo de contar suas desventuras. O seu confidente está mais ansioso do que você. Fala sem parar. Você está incomodado. Ele era sua grande esperança para dividir as preocupações e, no final das contas, você é quem passa a ser todo ouvidos. Você abre a boca, mas não completa a frase. Se você acha que tem um problema, o caso dele é pior. É um problemaço.

Você acaba rindo da insignificância do seu. Agora ele parou de falar. É a deixa para você entrar de sola com um conselho inteligente. Não, ele só está tomando fôlego para reiniciar. Ou esta parada foi estratégica: ele não quer cansar o ouvinte. Você sabe que está sendo usado, mas não liga. Ora, ele é seu grande amigo, de fé, irmão, camarada...

Com a maior pompa, você abre os braços, olha bem naquele par de olhos suplicantes a ponto de verter lágrimas, escolhe palavras e abre a boca. Não dá tempo. Ele vem com um problema ainda maior e manda ver quase dez minutos de monólogo. Silêncio. Ufa! Você acaba percebendo que não tem problemas.

Ou melhor, seu problema agora é seu amigo carregado de problemas. Agora, ele quer realmente te ouvir. Não mexe nenhum músculo. Olha fixamente pra você esperando a palavra confortadora. Você passa a ser um padre, pastor ou analista. A bola está contigo. Mande uma mensagem de fé e esperança para este coração atribulado!

Sem levantar da cadeira, sem mexer os braços, sem escolher palavras, você começa a falar. Bingo! Ele continua quieto. Você vai falando pedindo pelo amor de Deus para não ser interrompido. Ele dá umas mexidas na cadeira, abre a boca, se arrepende e fecha. Você só diz frases feitas: “Não esquenta, no final tudo se ajeita”, “fé em Deus e pé na tábua”, “há males que vêm pra bem”, “dê tempo ao tempo”, “o tempo cicatriza todas as feridas”.

Você gastou um estoque considerável de ditos populares e sabe que não foi muito convincente. Seu amigo se despede um pouco mais aliviado. Não pelo seu apoio através das palavras corriqueiras, mas porque você o ouviu.

Sozinho, você pensa naquele ensinamento antigo. Deus nos fez com uma boca e dois ouvidos para falar menos e ouvir mais. Então é melhor ouvir o que as pessoas têm a dizer e segurar a onda. Nesta torre de Babel o ideal é falar com Ele. A gente não precisa abrir a boca e sabe que Ele está escutando.

(Livro Da minha janela, publicado em 2003)

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