Girei duas vezes a chave na fechadura. Como faço desde que me conheço por gente, pressionei o trinco para confirmar que a porta estava fechada. Acabava de me despedir da minúscula salinha que há anos ocupava. Para não sentir muitas saudades, fui me despedindo aos poucos do lugar. Dia após dia fui decompondo o cenário. Primeiro tirei os quadros, gravuras baratas de Matisse, Renoir, Kandinsky e Van Gogh. Depois, as fotografias da cidade, que fiz questão de emoldurá-las, feitas por talentosos amigos.
A retirada da papelada dos armários doeu, pegou forte. Eram tantos papéis contando histórias através de palavras, números, fotos e desenhos... A associação de papéis agora tão inúteis com episódios pessoalmente marcantes me deixou tristonho. Depois dos armários, a escrivaninha. A tarefa de separar o que era meu e o que não era também não foi nada agradável. Foi um processo de separação concreta. Folhas e objetos postos cada um do lado correspondente: o que teria que ficar e o que levaria.
Enchi quatro caixas de papelão e a cada dois, três dias levava uma. Por fim, a sala ficou vazia, os armários e as gavetas quase desocupados e a parede pelada com pregos solitários. Nos últimos dias fiquei olhando para as paredes e para a porta. Estava me despedindo da salinha e de todos aqueles anos. O olhar já não era tão triste. Era mais de agradecimento. Os companheiros chegavam e perguntavam: “Então, está definido?”
Eu dizia que sim com uma certeza que saía da boca e da mente, mas o coração, que sorrateiramente havia se apegado ao lugar, encontrava forças para negar a intenção que há tempos vinha sendo amadurecida. Eu apresentava um “sim” com sentimentos híbridos embutidos.
Você olha para os lados e tem a certeza que aquela salinha nunca mais será a mesma ainda que volte centenas de vezes. O prisma é outro, a perspectiva é diferente. Porque houve uma separação como tantas e de todos os tipos que ocorrem no dia-a-dia. Quando você fica muito tempo num lugar, você se sente o dono, toma posse, conquista o espaço.
Em determinados momentos a sua segurança é tamanha que o seu prazo de validade parece que nunca vai vencer, é a perder de vista. Mas eu sabia que o dia chegaria. E eu queria ser o senhor deste dia, antes que me dissessem do vencimento do prazo.
Antes de apagar a luz e fechar a porta, olhei, dei um sorriso satisfeito. Não quis levar um terço de madeira e barbante que, no ano passado, achei na rua. Ficou amarrado no trinco de um dos armários. É a minha modesta contribuição para que Deus proteja o substituto. Fechei a porta, entreguei a chave e saí. O movimento na cidade era o de sempre. O vai-e-vem sem parar. Segue a vida, vou seguindo.
(Publicado no jornal O Diário do Norte do Paraná em 21/01/07)
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